Fundo Casa apoia iniciativas regenerativas de comunidades de fronteira na Amazônia
Matéria e fotos pela equipe de colaboradores do Instituto Fronteiras.
Para as comunidades do Rio Valparaíso, no Alto Juruá acreano, não era mais possível esperar pela assistência governamental para suprir suas necessidades básicas, que se agravaram com a pandemia da COVID-19 e as alagações históricas que atingiram o estado do Acre na primeira metade de 2021. Resilientes sobreviventes dos antigos seringais na região e atualmente moradores da floresta, essas famílias concluíram que precisavam buscar por parcerias na construção de uma solução compartilhada para superação do quadro de crise instalado sobre o território.
As enchentes no começo de 2021 vieram logo após um período de seca sem precedentes no Rio Valparaíso, quando a cota do rio chegou a pouco mais de um palmo, consequências sensíveis das mudanças climáticas na região. Com acesso exclusivamente fluvial, as comunidades enfrentaram severas dificuldades para escoar a produção local e transportar mercadorias durante os últimos meses de 2020 e, no início de 2021, foram rapidamente surpreendidas com os diversos prejuízos trazidos pelas alagações, principalmente os danos causados às produções e casas e os surtos de malária, que tipicamente surgem com as cheias do rio.
Os inesperados acontecimentos agravaram ainda mais os efeitos da pandemia, que no Alto Valparaíso, território que abrange o encontro dos três afluentes a partir dos quais surge o rio, se manifestou no encarecimento repentino das mercadorias no mercado local e em um isolamento imposto pelo medo da contaminação com o vírus presente na cidade. Em algumas casas, as famílias relatam que não viajam à cidade desde a chegada da pandemia ao município.
Todos esses fatores contribuíram para o estabelecimento de um quadro de insegurança alimentar generalizado sobre o território e que foi potencializado, ainda, pelas frequentes invasões de caçadores externos no Alto Valparaíso. Esses caçadores buscam nos afluentes do Rio Valparaíso animais silvestres já escassos em outros territórios.
Diante desse cenário, a comunidade Três Bocas, no Alto Valparaíso, logo precisou começar a se movimentar para buscar parcerias que pudessem contribuir para superar o difícil momento vivenciado não só por ela, mas por todas as comunidades naquele território, protagonizando um processo único em sua história. Foi assim que iniciou a parceria entre nós, do Instituto Fronteiras, e a comunidade Três Bocas, com o propósito de assistência emergencial às famílias do Valparaíso, num contexto em que não há alternativa a não ser cooperar de forma coletiva, desprendida e solidária.
Nós somos uma pequena ONG local com atuação socioambiental sediada entre os estados do Acre e do Amazonas e que tem como missão o fomento à processos comunitários em situações de fronteira destinadas à regeneração de relações enraizadas neste território. Nossa particularidade de atuação se sustenta sobre uma região da Amazônia em que se encontram as cabeceiras do Javari e do Juruá em faixa de fronteira entre o Brasil e o Peru, e em que convivem povos indígenas de três diferentes troncos linguísticos (pano, arawa, aruak), incluindo povos isolados, além de ribeirinhos remanescentes dos seringais e outras comunidades tradicionais das florestas.
Combinado com sua ainda desconhecida biodiversidade, convivemos sobre um riquíssimo mosaico de culturas, identidades, territórios, crescentemente ameaçados por processos de exploração econômica predatória ancorados em concepções anacrônicas e colonizantes, como o desmatamento e a grilagem de terras para a expansão da pecuária e de monoculturas de baixa produtividade. Vivemos, portanto, sobre frágeis fronteiras que conectam processos humanos e ecológicos neste território que não encontram paralelo, e sobre as quais trabalhamos para que possam interagir em trajetórias compartilhadas de regeneração em meio à constante ameaça de sua destruição.
Confira o vídeo feito pela equipe do Instituto Fronteiras:
Com a parceria que envolveu as comunidades do Valparaíso, o Instituto Fronteiras, o Fundo Casa Socioambiental e a Fundação Luterana de Diaconia, conseguimos organizar uma ação solidária emergencial que beneficiou as comunidades de Três Bocas, Tatajuba, Santa Luzia, Araújinho e Queimadas. Na ação, foram distribuídas cestas básicas com alimentos, materiais de higiene, máscaras e frascos de álcool em gel.
A ação em campo executada pela equipe de voluntários da comunidade e do Instituto Fronteiras durou quatro dias, entre transporte e distribuição das cestas. O acesso da cidade ao Alto Valparaíso foi um dos principais desafios. Enfrentando o desgaste físico, a constante exposição ao sol e os troncos e galhos de árvores que atravessam o rio, a viagem pode levar até um dia em pequenas embarcações e pelo menos dois dias para o transporte de mercadorias. No período de estiagem, em agosto, durante o verão amazônico, até mesmo o transporte de pessoas se torna muito desafiador.
A distribuição das cestas protagonizada pela comunidade Três Bocas foi um momento muito importante, tanto para a comunidade quanto para o Alto Valparaíso como um todo. Entre as orgulhosas falas dos moradores que tivemos o privilégio de registrar, importa mencionar que muito mais do que prover as necessidades imediatas da sua comunidade e das comunidades vizinhas, o projeto foi um processo de aprendizagem mútua e regeneração das esperanças dos envolvidos. A partir dele, a comunidade se fortaleceu assumindo uma nova postura nas suas relações com instituições externas, incorporando aprendizados que transformaram suas perspectivas sobre seu futuro. Como próximos passos, a parceria abrange a execução de um projeto de construção de um sistema de abastecimento de água potável na comunidade, que atualmente se encontra em fase de planejamento.
Portanto, que o nosso leitor aqui não se engane. Não estamos aqui a relatar uma experiência pontual, o que já seria muito, de uma ação assistencial em benefício de comunidades isoladas e vulneráveis. Mais que isso, essa experiência se assenta sobre o poder de mobilização de vozes enraizadas entre árvores, lagos e igarapés que buscam o reconhecimento e a valorização de seus modos de vida capazes de iluminar alternativas para os problemas de crise climática e socioambiental que vão se agravando mundo afora. São vozes que ecoam por essas matas e encontram ressonância em outras comunidades do Juruá que também vivem suas lutas por emancipação e autonomia. Vozes e ouvidos que produzem sementes de resiliência cujas mudas insistem em brotar em solos que se transformam com a aproximação das motosserras, dos tratores e das estradas no entorno, como aquela cujas obras se iniciam entre os municípios de Cruzeiro do Sul, no Brasil e Pucallpa, no Peru.