Cerrado precisa de recursos para sobreviver, e a Filantropia Comunitária pode ser um caminho
Formato inovador de doação de recursos valoriza conhecimento e fortalece práticas de povos e comunidades tradicionais cerratenses
A Filantropia Comunitária pode fortalecer práticas e valorizar conhecimentos e saberes de povos e comunidades tradicionais do Cerrado, mas, para isso, precisa receber um maior volume de apoios e recursos financeiros que sejam acessados e geridos por comunidades de forma desburocratizada.
Essa foi a conclusão do debate “Diálogos sobre a importância da filantropia comunitária na conservação do Cerrado e da cultura de seus povos”, realizado pelo ISPN e pelo Fundo Casa Socioambiental, com apoio da Rede Comuá, durante o X Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, em setembro.
“Processos de doação desburocratizados facilitam o acesso a recursos, e é preciso ter em mente que as comunidades são parte essencial da tomada de decisão: elas têm autonomia para decidir como os projetos serão implementados”, explica Jonathas Azevedo, assessor de programas da Rede Comuá, uma rede de Filantropia Comunitária e de Justiça Social da qual fazem parte o ISPN e o Fundo Casa.
Parte da programação do Mês da Filantropia Que Transforma, que busca dar visibilidade às práticas da filantropia comunitária nas cidades e nos territórios, o evento contou com a participação da atual presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Mercedes Bustamante, que é bióloga e especialista em mudanças climáticas.
“Um encontro como esse, com tantas entidades presentes, é capaz de desenhar uma cesta de estratégias para conservar nosso Cerrado”, declarou a pesquisadora, acrescentando que, com o avanço das mudanças climáticas, é preciso “desenhar soluções customizadas para diferentes regiões”.
Ao lado de Mercedes, Jonathas acrescentou que “fortalecendo a sociedade civil, a gente fortalece a agenda de acesso a direitos e, consequentemente, a democracia”. Para ele, a reunião de membros da Rede Comuá significa “reafirmar esse posicionamento político”.
Compuseram a mesa ainda Sueli Gomes, assistente técnica do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAAV), de Minas Gerais, beneficiária do Fundo PPP-ECOS (cuja sigla significa Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais), do ISPN, Francisca Ramos de Souza, vice-presidente do Instituto de Ações Socioambientais (INASA), no Maranhão, e Elisangela, da Brigada Apinajé, ambas beneficiárias do Fundo Casa Socioambiental.
Representando fundos que promovem a Filantropia Comunitária, estavam Luciene Dias, secretaria do Fundo Babaçu, Marinalda Rodrigues, coordenadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Isabel Figueiredo, coordenadora do Fundo PPP-ECOS, e Rodrigo Montaldi, gestor de programas do Fundo Casa Socioambiental. A mediação da mesa foi feita por Cristiane Azevedo, diretora superintendente do ISPN.
Também estiveram presentes empresas, institutos e fundações que financiam iniciativas comunitárias, como a Fundação Banco do Brasil, o Banco Mundial, o Climate and Land Use Alliance (CLUA), a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), o Instituto Humanize, o Instituto Bancorbrás, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Instituto Sabin, o World Wide Fund for Nature (WWF), o Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (FunBEA), a Fundação AVINA, a Caixa Econômica Federal e o Correio Brasiliense.
Marco Lemos, da Fundação Banco do Brasil, ao apresentar o trabalho desenvolvido pela entidade, disse que está em curso um processo de planejamento estratégico para o próximo ciclo de apoios e que há também um esforço de atuação com redes locais, para dar mais capilaridade aos recursos. “A partir da articulação em rede, conseguimos chegar nas bases”, disse.
Filantropia comunitária na prática
No Bico do Papagaio, estado do Tocantins, uma Brigada Voluntária Feminina Apinajé foi criada entre mulheres indígenas apinajé para combater o fogo e cuidar da Terra Indígena. É preciso “manter a mata em pé para que nossas crianças e netos possam viver com aquela natureza”, explica a brigadista Elisângela Dias, do povo apinajé. E também para que haja possibilidade de caça e pesca por ali, complementa.
Iré, nome da brigadista no idioma de seu povo, explica que a reserva em que habita tem mais de cem nascentes e oito ribeirões limpos, graças ao cuidado de quem mora no território.
A Brigada só pôde ser criada com o apoio do Fundo Casa Socioambiental, que disponibilizou R$30 mil para compra de equipamentos de combate a incêndios. A iniciativa de mulheres apinajé tem colaborado ainda com o trabalho de outras brigadas vinculadas ao Ibama, que são poucas, “já que às vezes tem muito fogo e eles não dão conta”, diz Iré.
“Estamos ali para ajudar pelo amor à terra e à natureza”, acrescenta. Segundo ela, o trabalho tem fortalecido as mulheres apinajé e inspirado as meninas da comunidade.
Para Rodrigo Montaldi, representante do Fundo Casa, “as comunidades de base precisam ser apoiadas porque são elas que garantem a proteção dos territórios, dos biomas, a conservação ambiental e o equilíbrio climático”.
Desburocratizar é preciso
Sueli, do CAAV, explica que um financiamento desburocratizado dá autonomia para comunidades e suas associações construírem propostas próprias e gerirem seus próprios recursos.
A assessora técnica conta que sua região, no Vale do Jequitinhonha, convive com extensas áreas de monocultivos de eucalipto e que, diante deste cenário, “a Filantropia Comunitária tem nos dado condição de sensibilizar comunidades sobre o impacto desse monocultivo e de propor alternativas para a escassez hídrica e degradação das terras”.
Beneficiária do PPP-ECOS, ela cita ainda a possibilidade de acessar mercados e de fortalecer institucionalmente associações comunitárias, acrescentando que tal fundo é um dos poucos que permite uma gestão mais flexível dos recursos.
Uma outra característica de entidades comunitárias é que parte delas não são formalizadas, o que gera uma dificuldade na busca por recursos. Nesse sentido, Francisca, do INASA, argumenta que “é muito bacana estar falando de Filantropia Comunitária”, já que esse tipo de iniciativa permite a prestação de serviço entre uma entidade formalizada e uma não formalizada.
Ela conta que, desde 2006, o INASA busca oportunidades por meio de editais, mas que são difíceis de acessar. No ano anterior, a equipe chegou a pensar em destituir a própria organização, mas foi quando conheceram a filantropia comunitária. “Confiança deve ser a base entre as comunidades, para que uma entidade parceira formalizada preste serviço para uma não formalizada e assim mais pessoas e projetos possam ser beneficiados com o recurso.”
Recurso gera renda
Na “ponta da cadeia” da filantropia comunitária, o CAAV, por sua vez, mantém um Fundo Rotativo Solidário, estimulando que novos atores comunitários possam acessar crédito para geração de renda.
E é afinal o acesso a recursos que permite a geração de renda em territórios onde outras formas de apoio não chegam, diz a vice-presidente do INASA. Para ela, quando a comunidade está fortalecida, o bioma se fortalece: “a gente consegue manter as plantações mais verdes e é possível respirar melhor”.
“Quando a gente tem recurso, podemos promover atividades dentro da comunidade, criando vínculo entre famílias e o envolvimento da juventude na execução de projetos”, explica. “As pessoas beneficiadas tendem a fazer o reflorestamento de plantas nativas buscando manter a floresta em pé.”
Além disso, lembra, a falta de recursos gera êxodo rural: a pessoa precisa se deslocar para centros urbanos em busca de renda e subsistência.
No Piauí, o Fundo Babaçu atua pelo fortalecimento econômico de mulheres quebradeiras de coco babaçu, também como uma forma de conservação do Cerrado. Para extrair o coco, elas não derrubam nenhuma palmeira e nenhuma árvore nativa de dentro do território: “sem o babaçu de pé não há vida”, destaca Marinalda, do MICQB.
Sem Cerrado não há Amazônia
Quando se fala em apoio à conservação de biomas, outro aspecto que chama atenção é a quantidade de recursos concentrados na Amazônia em detrimento do Cerrado – e dos demais biomas.
“Há uma visão entre financiadores e a filantropia internacional de que a Amazônia é a grande responsável pelo equilíbrio ecológico e climático do planeta”, argumenta Rodrigo do Fundo Casa. É fato, diz ele, que há uma enorme importância do bioma amazônico, mas que todos precisam estar de pé para conservar o meio ambiente e frear as mudanças climáticas.
Isabel Figueiredo, do ISPN, resume que sem Cerrado não há Amazônia, os biomas são interligados entre si e é preciso trazer a atenção para a nossa savana, tão desmatada e ao mesmo tempo tão importante por sua sociobiodiversidade e pela provisão de águas ao país.
O problema de olhar apenas para um bioma é que os recursos financeiros para iniciativas socioambientais acabam todos sendo direcionados ao norte. Em 2022, por exemplo, 52% dos recursos doados pelo Fundo Casa foram para a Amazônia Legal.
Ao longo de sua história, desde 2005, o Fundo Casa apoiou 972 projetos na Amazônia e áreas de transição adjacentes, e 461 no Cerrado, considerando áreas adjacentes. Enquanto R$32,6 milhões foram destinados à Amazônia, apenas cerca de R$13 milhões foram para o Cerrado. Na maior parte dos casos, o destino destes recursos é previamente indicado pelos financiadores – a discrepância entre os valores destinados aos dois biomas demonstra que é necessário um olhar mais atento ao Cerrado.
Cenário crítico
De 2006 a 2019, a mudança do uso do solo, antes dominado por árvores e convertido em áreas de pastagens e monocultivos, resultou na redução da evapotranspiração anual em 10%, reduzindo assim a umidade do ar.
Outro impacto desse desmatamento é o aumento da temperatura do bioma em 0,9ºC, segundo a pesquisa Implicações do estresse térmico para a saúde da força de trabalho no Brasil (disponível em inglês).
“Sustentabilidade não é apenas uma opção, mas um imperativo para o Cerrado”, declara Mercedes, acrescentando que é preciso “ações estruturantes e emergenciais para lidar com o bioma”.
“A gente não pode esperar e nem errar mais com esse bioma tão especial”, afirma, ao demonstrar que a brusca mudança do uso do solo do Cerrado para pastagens e monoculturas, já o deixou “mais seco e mais quente” – e que esse “estresse térmico” também afeta a saúde de trabalhadores da região.
Os efeitos desse desequilíbrio ambiental já estão sendo sentidos pela sociedade, e não é de hoje. O tempo urge e há uma série de ações que devem ser tomadas para impedir que as mudanças climáticas impactem ainda mais a vida da população.
Apoiar organizações comunitárias de povos e comunidades tradicionais com investimento social privado, nacional e internacional, é um caminho importante para contribuir com a mitigação e adaptação deste cenário e para o alcance da justiça socioambiental.
*Texto por Camila Araujo/Assessora de Comunicação ISPN.