09.08.2024

Inédito, apoio do Fundo Casa fortalece projetos de cultura e línguas indígenas

Em Amambai, Mato Grosso do Sul, a escola municipal Mbo’eroy é uma referência que vai além do ensino. O prédio é frequentado por mais de 900 alunos indígenas do povo Guarani Kaiowá nos dias de semana, garante refeições aos estudantes e se transforma num ponto de encontro da comunidade nos dias de folga.

Por anos, Daiane Aquino Cáceres, gestora escolar indígena, quis trazer para a sala de aula o conhecimento tradicional em forma de material didático. Agora um passo importante nesta direção acaba de ser dado. Em breve, os alunos receberão livros com as histórias contadas, até então, somente nas falas de anciões. Os professores transformaram a oralidade em narrativas lúdicas escritas e impressas para ajudar o aprendizado dos estudantes.    

“São histórias em que eles são os protagonistas. As crianças estão se vendo na leitura. Então o aprendizado fica melhor, facilita a questão de memorizar, a questão de dialogar e tudo isso é graças ao projeto que agora nós estamos conseguindo colocar em prática”, afirma Cáceres.

Estudantes e professores da Escola Guarani Kaiowá | Foto: Arquivo Escola Guarani Kaiowá

O projeto ao qual Cáceres se refere foi um dos contemplados no edital “Educação para o bem viver  – Apoio às comunidades indígenas pela equidade na educação”, lançado em meados de 2023 pelo Fundo Casa Socioambiental. Em sua primeira edição, a chamada mobilizou 115 propostas e surpreendeu os coordenadores.

 “Ficamos surpresos com o volume e qualidade dos projetos. Muitos proponentes relataram que era a primeira vez que viram a possibilidade de receber apoio para iniciativas de educação indígena”, comenta Inimá Krenak, gestora de programas do Fundo Casa. 

Embora a chamada recente tenha sido a primeira voltada especificamente para educação indígena, o Fundo Casa tem um longo histórico de atuação neste campo. Desde que foi criado, em 2005, ele apoiou 402 organizações indígenas de 182 povos diferentes. Foi este engajamento que chamou a atenção da entidade filantrópica norte-americana Imaginable Futures, a doadora dos recursos, detalha Inimá.

As propostas foram tão bem avaliadas que o Fundo Casa conseguiu apoiar o dobro do inicialmente planejado: em vez de 15, foram 31 propostas contempladas. A maior parte delas vieram dos estados amazônicos, região que concentra a maioria da população indígena no país.

Na escola Guarani Kaiowá, o recurso extra ajuda ainda os professores a completarem o que falta para garantir a aprendizagem. “Nós podemos oferecer melhorias dentro da sala de aula, desde o lápis e a borracha. Já facilita o nosso trabalho porque algumas das nossas crianças não têm condições de comprar um apontador, um caderninho”, comenta Cáceres.

 Uma história de resistência 

Em Rondônia, Márcia Mura já sentiu na pele as barreiras que surgem quando um professor da rede pública tenta fazer o diálogo entre os conhecimentos tradicionais indígenas e o ensino formal. Márcia sofreu muita resistência e foi retirada de suas atividades na escola onde atuava, na sua própria comunidade, de forma arbitrária.

Quando o projeto que ela submeteu ao edital do Fundo Casa foi aprovado, foi como se tivesse recebido a confirmação de que estava indo no caminho certo, apesar do processo doloroso vivido na rede pública do estado.

“Nosso objetivo é aliar esses saberes indígenas tradicionais aos componentes curriculares, é fazer esse trabalho de tornar presente a pedagogia da afirmação indígena dentro do contexto ribeirinho, onde também existem famílias indígenas. É promover essa conexão com outros territórios onde também vive o povo Mura”, explica Márcia. 

O projeto percorre regiões com esta estratégia na bagagem para mobilizar educadores e lideranças. É como se toda a comunidade se transformasse numa escola, com participação de anciãos, jovens e crianças. A primeira etapa ocorreu no lago do Uruapiara, Amazonas, onde viveu a avó de Márcia. As vivências incluíram rodas de literatura indígena, cobertura de telhados no estilo tradicional, explica a professora. 

No distrito de Nazaré (RO), crianças Mura e ribeirinhas dialogam com a arte, com objetivo de estimularem a memória e pertencimento do povo Mura e outros povos indígenas. Foto: Márcia Mura

Outra etapa ocorreu às margens do rio Itaparanã, no Sul do Amazonas, marcada por conflitos e a luta pela demarcação. O trabalho feito com a escola indígena envolveu os mais experientes, lideranças e crianças. “Usamos a Arte, a História, a Arquitetura para trabalhar, por exemplo, a matemática. Acompanhamos um plantio de milho, os mais velhos ensinam uma técnica tradicional de plantar e, ao mesmo tempo, trabalhamos as operações matemáticas”, menciona.

As experiências do projeto também recuperam memórias. Oficinas com matéria-prima retirada da Floresta Amazônica, como palha, ensinam a tecer brinquedos, cataventos, cestos e repassam para a próxima geração a técnica tradicional – a mesma que Márcia aprendeu com sua avó.

Márcia passou por uma escola na cidade depois de ter sido removida do ensino na comunidade. Nesse meio tempo, apesar de toda a resistência que encontrou e das pressões que sofreu, a professora auxiliou muitos estudantes a se reconectarem com suas origens. “Os encontros ajudaram muitos alunos a se identificarem e eles passaram a se apresentar como indígenas. Eles se sentiram à vontade para falar sobre seu povo, sua cultura, de onde vieram”, diz Márcia, pontuando todo o preconceito e tentativa de apagamento que os indígenas lidam no contexto urbano.

 Encontros inéditos

 No Território Indígena do Xingu, o esforço é garantir qualidade de ensino nas escolas espalhadas pelas aldeias. Por isso que o edital chegou num momento crucial da Associação Terra Indígena do Xingu, ATIX. A entidade buscava meios de financiar o primeiro encontro escolar da história do território. Num local como o Xingu, os desafios e custos de logística são enormes: a movimentação de uma aldeia a outra inclui horas de navegação e centenas de litros de gasolina. 

1º Encontro da Educação Indígena da Terra Indígena do Xingu realizado em 2023 – Associação Terra Indígena Xingu – ATIX – Mato Grosso. Foto: Tepkarara Crispim Khĩsêtje

 

Como a proposta foi contemplada, o projeto finalmente saiu do papel em novembro de 2023. Era a oportunidade aguardada por mais de 200 professores para entender como as diferentes escolas trabalham, como o currículo escolar e a cultura indígena se relacionavam na sala de aula e fazer trocas pedagógicas entre as comunidades. 

“Desde que o território começou a promover um movimento em prol da educação, lá na década de 1980 nunca tinha acontecido um encontro. Foi uma oportunidade importantíssima e uma oportunidade de promover reencontros emocionantes, com os pioneiros”, narra Douglas Floresta, um dos coordenadores.

Desde aquele início, alguns programas surgiram para apoiar a educação indígena. Em 2001, por exemplo, o Projeto Urucum Pedra Brilhante formou a primeira turma de magistério indígena intercultural. Muitos que saíram desse grupo ingressaram no curso de Licenciatura Intercultural da Universidade Estadual de Mato Grosso, que inaugurou uma turma naquele mesmo ano.

Muitos dos professores que fizeram parte desses programas saíram desse encontro no Xingu com uma nova semente: incentivar formação voltada para as mulheres indígenas e fundar um Instituto Federal no território.

“O movimento pela educação cobra que a presença das mulheres seja mais valorizada e que as alunas recebam mais incentivo, para que elas consigam sair do ensino médio e seguir para a universidade”, diz Floresta.

Dos mais de 200 professores no Xingu, apenas quatro são mulheres – e só uma delas frequenta o curso de graduação na universidade. No total, o território de 26 mil quilômetros quadrados conta com 17 escolas centrais e algumas salas anexas distribuídas em aldeias.  O Xingu foi demarcado em 1961 e reúne 16 povos: Aweti, Ikpeng, Kaiabi, Kalapalo, Kamaiurá, Kĩsêdjê, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Wauja, Tapayuna, Trumai, Yudja, Yawalapiti.

 Formação online crítica

A adesão dos participantes ao curso Multiplicadores para o fortalecimento das Línguas Indígenas no Amazonas, elaborado pelo ​​Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (Foreeia), impressionou Alva Rosa Vieira. Foi ela que liderou o processo de submissão da proposta do programa voltado ao fortalecimento das línguas indígenas pelos diferentes povos, que recebeu o apoio do Fundo Casa.

Com formação teórica virtual, o curso foi pensado no contexto da Década das Línguas Indígenas (2022-2032) proclamada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, Unesco. Só no Brasil, há o registro de 274 delas, faladas por 305 povos, apontam dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Funai.

“São muitas demandas que recebemos. Lidamos com questionamento do tipo: ‘professor que não fala mais a língua não é indígena’. O curso lida com todas essas perguntas, traz especialistas para debater como as línguas devem ser trabalhadas e fortalecidas”, diz Vieira.

Doutora em educação, Vieira é do povo Tukano e uma das fundadoras do Foreeia, criado em 2014. Ela diz que o aporte feito pelo Fundo Casa foi fundamental para que pudessem formatar um curso online, que será finalizado em seminário presencial. No passado, muitos projetos foram custeados pelos associados de forma voluntária, com sacrifícios pessoais, conta Vieira.

“A internet também facilita que as mensagens cheguem às aldeias. E também levamos em conta oferecer o curso numa plataforma mais acessível. Muitas vezes, são duas, três pessoas dividindo uma tela de celular, participando da aula. É muito impressionante o interesse”, diz a coordenadora da iniciativa, que conta com 200 inscritos e 180 participantes no curso. 

A formação não se restringe a professores. A intenção é orientar estudantes e lideranças indígenas no esforço para valorizar as línguas indígenas, dentro e fora da sala de aula, discutir propostas para melhorar o ensino, a saúde e fortalecer a luta pelos direitos.

Próximos passos

A primeira chamada para educação indígena do Fundo Casa abriu uma porta e mostrou uma demanda por apoio a projetos voltados para este tema. Por isso que a expectativa é de continuidade da iniciativa, diz Inimá Krenak.

“Os projetos estão sendo finalizados e esperamos abrir novas chamadas, buscando parceiros que possam apoiar. Ficou claro que este tema carece de apoio, de recursos”, afirma a gestora de projetos do Fundo.

 

Por Nádia Pontes para o Fundo Casa Socioambiental

 

 

 

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