Ousar e Transformar: A Escala do Apoio Direto às Comunidades
Por Cristina Orpheo – Diretora Executiva do Fundo Casa Socioambiental
Desde que iniciei minha jornada no campo do “grantmaking” ou no campo de apoio a projetos como prefiro falar, percebi que certos conceitos, frequentemente tratados como universais, revelam-se diversos e complexos quando observados de diferentes perspectivas. O significado de “pequeno” é um exemplo emblemático dessa complexidade. Durante minha trajetória, não foram raras as vezes em que ouvi questionamentos do tipo: “Mas um apoio tão pequeno? Em que escala vocês trabalham? Como isso gera impacto?” Tais perguntas, porém, só fazem sentido a partir de um ponto de vista restrito, ignorando a realidade das peculiares diversas das comunidades que recebem esses recursos.
No contexto de comunidades historicamente marginalizadas e com poucas oportunidades, um apoio aparentemente “pequeno” pode ser transformador. O que pode parecer insignificante para os grandes financiadores, nas mãos dessas comunidades, torna-se um recurso valioso que catalisa mudanças profundas e sustentáveis. No Fundo Casa, há muito tempo abandonamos a noção de “pequeno apoio”. Em vez disso, falamos em apoio na medida certa, ajustado à capacidade de gestão e absorção de cada grupo em seu contexto específico. Ao longo dos mais de 19 anos de atuação, desenvolvemos uma metodologia de apoio que leva em consideração as particularidades de cada território, povo e realidade. Mais de 3.500 iniciativas foram apoiadas por essa abordagem meticulosa, demonstrando que o impacto não se mede pelo tamanho do recurso, mas pela sua adequação e eficácia.
Essa abordagem não é uma exclusividade do Fundo Casa. Nos últimos 20 anos, fundos do Sul Global têm desenvolvido estratégias inovadoras e muito próprias para garantir que os recursos cheguem aos grupos de base comunitária que mais precisam, abrangendo os mais diversos públicos e áreas temáticas como igualdade de gênero, direitos LGBTQIAPN+, e equidade racial entre outros. Em muitos casos, esses fundos foram e são a única fonte de recursos que essas comunidades receberam para defender seus direitos e promover seus projetos. No entanto, no campo da filantropia conservadora, ainda persiste uma visão desconexa em torno da questão de “como fazer o dinheiro chegar na base”, resultando em um desperdício contínuo de recursos em busca de soluções que já existem, mas que são ignoradas por falta de confiança, visão, ousadia e inovação, ou pura miopia mesmo.
A obsessão por escala e impacto tem desviado o reconhecimento de um campo já estruturado e em expansão, capaz de fazer o dinheiro descer até as comunidades locais como nenhum outro. Grandes fundações, fundos públicos e cooperações internacionais, com suas estruturas burocráticas, enfrentam dificuldades quase insuperáveis para atingir esse objetivo. Contudo, é realmente necessário que essas estruturas realizem tal tarefa, quando já existem mecanismos criados e operados por aqueles que melhor compreendem as necessidades e desafios das comunidades?
É sabido que os fundos do Sul Global, sejam locais, ativistas, comunitários ou territoriais estão em diferentes estágios de amadurecimento, com alguns alcançando duas décadas de atuação, enquanto outros são mais recentes. Mas a experiência já demonstrou que os fundos próximos e dedicados a seus territórios ou temáticas, são a estrutura mais eficiente e segura para canalizar recursos diretamente para as comunidades locais, em menor tempo, e com comprovados efeitos exponenciais.
Em um mundo onde não há mais espaço para estratégias equivocadas e que não coloquem dinheiro diretamente nas mãos das pessoas que estão na linha de frente da luta contra a pobreza, o desmatamento e pela conservação das florestas, a estrutura experimentada dos fundos locais do Sul Global são a resposta nítida e clara. E, francamente, não temos mais tempo a perder com invenções e ideias mirabolantes que não espelham a realidade das comunidades mais importantes para a proteção da vida neste planeta. As respostas já existem, as estruturas sólidas também, e é tempo de usá-las, antes que percamos as últimas oportunidades de fazer a real diferença por pura vaidade de quem desconhece ou nega um universo inteiro que a filantropia do Sul Global já construiu à perfeição. Ao invés de questionar a escala e o impacto, o foco deve estar na competência, na ousadia e na capacidade de fazer diferente.
Recentemente, o Fundo Casa firmou um acordo com a Caixa Econômica Federal no valor de aproximadamente R$53 milhões, com R$40 milhões sendo direcionados diretamente para apoiar 400 projetos que irão impulsionar negócios da sociobiodiversidade e soluções baseadas na natureza. Essa iniciativa inclui mais de 40 oficinas de fortalecimento de capacidades em gestão e cinco encontros presenciais para fomentar a troca de experiências entre as associações apoiadas. É uma resposta contundente para aqueles que ainda duvidam da viabilidade de uma abordagem escalável e eficaz.
Se ainda restam dúvidas, sugiro uma visita às comunidades quilombolas, extrativistas, agroecológicas e de pesca artesanal pelo Brasil afora. Lá, com apenas 50 mil reais, esses grupos demonstram uma eficiência e impacto que desafiam a lógica tradicional de “grande escala”. Uma rede orgânica de colaboração conecta esses grupos e mantém a esperança viva, em um planeta que poderia estar em uma situação muito pior sem essas iniciativas. Para alcançar a escala desejada, é preciso dinheiro, sim, mas ele deve ser alocado no lugar certo, na hora certa e da maneira certa.
Não tenho receio em falar sobre a importância do dinheiro, como administradora que sou, num mundo onde a maior parte dos recursos é distribuída de maneira equivocada – e a filantropia não é exceção. Se equilibrarmos melhor essa distribuição, o impacto será significativamente maior. Essa não é a primeira vez que o Fundo Casa faz esse tipo de parceria, mas infelizmente ela é rara. Agora, restam às grandes fundações da filantropia, e aos grandes mecanismos financeiros existentes a coragem de seguir essa trilha e apostar naqueles que estão, de fato, fazendo a diferença.
Que se faça a inspiração!