Comunidade kilombola transforma terra degradada em projeto de vida saudável coletivo
Em Triunfo, Rio Grande do Sul, a Comunidade Kilombola Morada da Paz (CoMPaz) celebra a conversão de área degradada em solo fértil após anos de trabalho coletivo, respeito a tradições e conexão com meio ambiente.
Quando chega a fase da lua nova, as mulheres e crianças da Comunidade Morada da Paz (CoMPaz) se dedicam ainda mais às ervas medicinais que cultivam. É no quarto dia que elas fazem os rituais de cura, fortalecem o conhecimento sobre as plantas que consideram sagradas e as transformam em fluídos e sabonetes usados para cuidar de todos os moradores.
Iyakekerê Ìyamoro Omo Ayó Otunjá é uma dessas cuidadoras atentas. Ela é uma Ìyalossãe, é uma mestra, guardiã do asé das ervas sagradas, que tem a permissão, a benção para o seu preparo em ritual próprio da CoMPaz, onde celebram uma relação de respeito, reciprocidade e de complementaridade com a natureza. Ela se autorreconhece como kilombola, guardiã da memória ancestral, da espiritualidade afrobudígena da Nação Muzunguê.
Olupeje é uma Egbomi (irmã mais velha) da CoMPaz, faz parte do Clã da Lua Nova. Ela estuda plantas medicinais há anos e compartilha o que sabe com todas as participantes – incluindo a caçula, de quatro anos. “Somos as senhoras das ervas, da magia. As folhas são importantes para o cuidado do corpo, do espírito, da vida das pessoas”, diz.
“Sem folha não tem vida. Axé é uma força vital, que vem da terra, das entranhas, onde a gente revira, põe a semente, põe a muda, põe os sonhos, transformações e realizações. Nosso clã está neste campo mágico, em que mulheres vão aprendendo umas com as outras”, afirma Ìyamoro.
As ervas medicinais são uma farmácia viva para a comunidade. Elas dividem espaço com árvores frutíferas, hortaliças e canteiros no terreno de pouco mais de cinco hectares em Triunfo, Rio Grande do Sul. Por ali, alguns pés de eucalipto são a única memória de uma terra que já foi degradada, agora coberta por mata nativa.
A paisagem verde foi recomposta pelas mãos dos próprios fundadores da CoMPaz. A pouco mais de 50 quilômetros da capital Porto Alegre, não muito distante de um pólo petroquímico, os primeiros moradores do espaço migraram para a zona rural inspirados por estudos de práticas espirituais em busca de melhores condições de vida.
Para transformar a terra arrasada em solo fértil, a dedicação integral de seus moradores contou também com apoios externos. O Fundo Casa está entre as entidades que colaboraram com essa transição.
“A gente sente que todos os apoios foram estratégicos, pois conseguimos multiplicar o impacto deles dentro do Território. É bonito ver fotos, registros, de como era a comunidade em 2002, quando começamos, e ver hoje. A Morada foi se transformando”, comenta Baogan Bàbá Kínní, um dos fundadores.
Suporte a cada novo passo
O trabalho da CoMPaz nunca foi isolado do entorno. Já nos primeiros anos, alunos de escolas públicas da região participavam de projetos piloto que abrangiam vivências e oficinas em diferentes temas, como alimentação saudável e reciclagem.
Em 2010, com apoio inaugural do Fundo Casa, foi possível estruturar na comunidade uma casa modelo em bioconstrução. A habitação que era inicialmente usada para demonstrar a viabilidade da construção sustentável, tornou-se um local sagrado para os(as) moradores(as) e hoje sedia rituais e encontros importantes, como os Ipádès (círculos sagrados de diálogos).
À medida que a comunidade foi se assentando, o plantio agroecológico agroflorestal biodiverso ganhou força, novas formas e importância para a soberania alimentar. Novos apoios ajudaram a garantir mudas, plantio de frutíferas, a formação de pomares e até a remoção de alguns pés de eucaliptos que ocupavam espaço demais naquele terreno que se tornava fértil.
“Os pomares que cultivamos abastecem a comunidade com goiaba, cítricos, mamão, por exemplo. Da nossa roça tiramos aipim, couve, milho, feijão. Foi-se o tempo daquela terra dura, seca. Agora temos até um baobá da África plantado nesta área”, explica Baogan Bàbá Kínní, fazendo referência à árvore sagrada para os afrodescendentes, maioria na CoMPaz.
Para Baogan Bàbá Kínní, as capacitações oferecidas também fizeram diferença. “Foram oportunidades para aprendermos melhor a fazer a gestão dos projetos e dos recursos, nos qualificamos para uma melhor execução”, completa.
Olhar para o futuro
Aos poucos, as colheitas têm aumentado e a comunidade já pensa em comercializar parte do excedente. Um dos apoios mais recentes do Fundo Casa foi usado para planejar como sacolas com esses alimentos saudáveis podem ser distribuídos para grupos de famílias.
Faz poucos meses que moradores e amigos da CoMPaz ajudaram a fazer geleias das bergamotas colhidas ali. As oficinas contam sempre com visitantes e propagam práticas agroecológicas e cuidados com a natureza.
Ìyamoro Omo Ayó Otunjá, Olupeje e Opá Tenondé, do Clã da Lua Nova, querem espalhar para novos espaços o bem que as ervas medicinais trazem. Um dos exemplos mais recentes e comemorados foi o envio de produtos feitos por elas para Cabo Verde, na África.
“O apoio do Fundo Casa é importante para a ekogestão do clã. para firmarmos um processo de transformar as ervas em produtos como pomadas, sabonetes, fluídos, tinturas, incensos e dar continuidade”, explica Olupeje.
A ideia da comunidade é participar cada vez mais de feiras, aumentar o círculo de trocas, expandir a criação de mudas. “Hoje nossa produção é mais para autoconsumo, mas queremos fortalecer o grupo de mulheres dentro da CoMPaz e, trabalhar mais com a geração de renda”, pontua Olupeje.
A Yagbá Ancestral da Comunidade Morada da Paz – Nação Muzunguê, Mãe Preta, sempre ensina aos seus filhos e filhas nos Ipádès no Território: “Plante, regue, espere, colha: aprenda a ofertar amor”, revelam os moradores da CoMPaz.