Fortalecendo a comunidade caiçara em Trindade
O que esperar de uma manhã de segunda-feira, garoa e temperatura amena em pleno litoral do Rio de Janeiro? Se este lugar for a vila caiçara de Trindade, você pode esperar alguns turistas confiantes que o tempo vai melhorar para aproveitarem as belezas naturais de uma das mais belas praias do Brasil, pode apostar. A temperatura agradável da água e sua linda cor verde ajudam a atrair visitantes, mesmo fora do verão.
A região de Trindade guarda lendas e histórias interessantes. Há quem diga que aquelas areias já foram refúgio de piratas, que se escondiam na baía para abordar os navios que saíam do porto de Paraty, carregados com as riquezas das Minas Gerais. Em um período muito mais recente, no final da década de 60, a região começou a atrair turistas.
Já na década de 90, os barqueiros e pescadores da vila caiçara vislumbraram uma oportunidade de renda com o transporte de turistas. No começo a atividade era irregular, e para não se transformarem em “piratas”, os barqueiros resolveram se organizar e formar uma associação legalizada e regulamentada. O processo foi lento, mas bem sucedido.
Naquela segunda-feira, o sol não apareceu. Mas mesmo assim algumas dezenas de turistas fizeram um belo passeio de barco até a Piscina Natural do Caixa D’Aço, uma piscina de água salgada, longe da praia mas com baixa profundidade e protegida pelas pedras. Nada melhor que um barqueiro local, que aprendeu o segredo daquelas águas através da experiência de gerações anteriores, para lhe guiar em um passeio com segurança.
A ABAT – Associação dos Barqueiros e Pescadores Tradicionais de Trindade surgiu para melhorar a qualidade do serviço de transporte entre praias. “O passeio começou em 1992, em 1994 já tinha pessoas comprando barco pra fazer o passeio, em 1997 a gente falou: vamos fazer uma associação?” Diz Robson Dias Possidonio, caiçara e presidente da ABAT. Mas na prática, a associação só conseguiu se formalizar em 2007, depois de muitas conversas e discussões entre os barqueiros.
No começo o serviço era mais como uma carona, mas a procura começou a intensificar proporcionalmente com o aumento do turismo, e as coisas tiveram que se adaptar. Segundo Robson, ”A associação surgiu dessa necessidade de a gente prestar um serviço melhor. A gente começou a usar os nossos barcos de pesca para transportar as pessoas que iam para a piscina e para outras praias”.
A preservação do bioma e das belas paisagens da região de Trindade estão diretamente ligadas a criação do Parque Nacional da Serra da Bocaina em 1971 e APA – Área de Proteção Ambiental do Cairuçu em 1983, que impediram a expansão imobiliária desordenada na região. Ironicamente, a reserva de 134.000 mil hectares, foi criada para ser um escudo em caso de um eventual acidente nas usinas nucleares de Angra I e II. A vila, distrito de Paraty, fica a poucos metros da divisa do parque e também a poucos quilômetros da divisa com São Paulo, as últimas praias do litoral sul do Rio de Janeiro.
As atividades dos barqueiros ficaram anos ocorrendo normalmente após a criação do Parque. Os morros agora estão preservados, pois os caiçaras deixaram de cultivar as terras. Continuaram a receber bem os turistas vindos do mundo todo e a pescar artesanalmente as sardinhas e sororocas que alimentam suas famílias e os moradores da vila. Os pescadores também monitoram a área para evitar a entrada dos grandes barcos pesqueiros na região.
Mas em 2008 o parque decidiu acompanhar mais de perto o que estava acontecendo, pois um grade evento poderia atrair ainda mais turistas para a região. Era a Copa do Mundo FIFA de 2014 que ainda estava por vir. O Governo Federal lançou em 2010 um ambicioso plano para melhorar a estrutura dos “Parques da Copa”. O plano era investir R$ 668 milhões em 23 parques federais em todo Brasil.
“Em 2008 chegou o parque e a gente começou a ter outros tipos de preocupação”, diz Robson. O ICMBio, que administra o parque, solicitou a ABAT 11 certificados para que os barqueiros pudessem continuar a prestar o serviço, 5 cursos seriam providenciados pelo próprio órgão, os outros ficariam por conta dos barqueiros, algo que custaria muito dinheiro e dedicação. Os cursos iam desde práticas de atendimento ao turista a gestão de riscos. “Quando surgiu toda essa problemática, a gente se viu sem ter pra onde correr”, diz Robson. Os caiçaras poderiam perder o direito de transportar os turistas naquelas águas onde foram criados.
Enquanto o ICMBio não providenciava seus cursos, os barqueiros começaram a se informar e correr atrás de ajuda para conseguir financiar a sua parte. Nessa procura, foram atrás do IPEMA – Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica, uma organização que já havia realizado um projeto com os caiçaras, relacionado a extração da polpa da palmeira juçara, com apoio do Fundo Socioambiental CASA. As consultoras Nathalia Bahia e Paula Chamy também foram fundamentais neste processo, assim como o grupo de pesquisa CGCommons/UNICAMP.
Robson nos explica: “A ABAT nunca tinha escrito projeto nenhum, onde a gente ia achar um financiador que ia nos ajudar dessa forma? A gente ficou sabendo que o CASA era uma instituição que ajudava pequenas iniciativas como a nossa. Naquele momento comunidades que seriam atingidas pela Copa, e o Parque Nacional da Serra da Bocaina era um Parque da Copa.”
A rede de parceiros do Fundo CASA levou até a ABAT a possibilidade de fazer as coisas andarem. O IPEMA ajudou a escrever o projeto e o dinheiro do apoio do CASA pagou os cursos. O resultado foi uma reorganização e mudança de ângulo na relação com o parque.
Aqueles que antes tiveram a capacidade de organização questionada, agora possuem argumentos e um trabalho que permite a ABAT também dar as cartas e entrar nessa discussão em um outro nível. Até hoje, mesmo após a Copa, o ICMBio não realizou os cursos que prometeu. O programa “Parques da Copa” fracassou, dos R$ 668 milhões prometidos para o investimento, apenas R$ 1 milhão foi realmente aplicado.
“E surtiu um efeito que, o parque contava essa comunidade, esse grupo de pescadores, como incapaz de trabalhar um projeto, de procurar por conta própria recursos pra financiar os cursos. Eles ficaram por conta de providenciar alguns cursos e ainda não deram pra a gente. Então nesse processo nós estamos mais adiantados, quando eles falam alguma coisa, nós falamos: ‘está pronto, tá aqui’. Então a gente tá caminhando e estamos na frente deles nesse sentido, todas as nossas demandas nós já cumprimos. Então, agora eles não tem como dizer não para nós. Isso para nós foi um ganho. Eles não podem dizer que não estamos interessados e não fizemos o dever de casa e dizer que quem vai fazer esse serviço é uma outra empresa.” Diz Robson.
O apoio deu tão certo que motivou os barqueiros, em parceria com as consultoras Natália e Paula, a escreverem outro projeto, desta vez financiado pelo programa Fortalecimento de Comunidades na Busca Pela Sustentabilidade, uma parceria em Fundo Socioambiental CASA e Fundo Socioambiental CAIXA. Agora, a ABAT está desenvolvendo uma análise de viabilidade econômica, outra exigência do parque, para garantir que a atividade pode ser viável sem infringir as leis ambientais. O apoio financia cursos e consultorias para a realização da análise. “Estamos avançados já, porque a ideia era eles criarem uma proposta e trazer para a gente.” Completa Robson.
“A participação dos barqueiros e das consultoras na estruturação do projeto, planejamento e realização das atividades foi muito importante para aliar o conhecimento local e técnico, promovendo capacitação e amadurecimento do diálogo dos representantes da associação nos diferentes espaços de tomada de decisão.” Diz a consultora Natália Bahia.
Mas nem tudo ainda está resolvido. A principal área de pesca dos caiçaras de Trindade, na Baía do Caixa D’Aço, está dentro do parque. Isso significa que perante a lei, a pesca tradicional artesanal está proibida. Mas os caiçaras não pretendem abrir mão de suas tradições, de sua essência, de seus costumes, de seus pratos tradicionais e de sua cultura. Mas este é um outro capítulo na relação entre o parque e os caiçaras de Trindade.
“E nesse momento a gente está chateado, porque estamos discutindo o turismo, mas a pesca não estamos discutindo. A pesca pelo parque é considerada predatória, e nós não somos predadores. Nossa pesca é artesanal. Das pescas, eu acho que é a menos impactante. Eu acho que todos nós causamos algum impacto por viver na terra. O Homem precisa comer o peixe. E acho que a gente causa bem pouco impacto se comparar com os grandes barcos industriais e com as grandes empresas e o que eles fazem hoje. E o parque não vê isso.” Diz Robson.
Atualmente, a ABAT em conjunto com outras associações locais (AMOT, ONG Caixa d´Aço Bocaina Mar), o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra, Paraty e Ubatuba e o Observatório de Territórios Saudáveis e Sustentáveis da Bocaina construíram a Cartografia Social da Pesca Artesanal de Trindade para fortalecer a luta da manutenção da atividade na comunidade.
O modo de apoiar do Fundo Socioambiental CASA permite que recursos cheguem efetivamente na base, na mão de comunidades como os barqueiros e pescadores de Trindade, um projeto planejado e realizado pela comunidade para a comunidade. “O que nós estamos discutindo faz muito sentido pra nós, é a nossa vida. Então está financiando uma coisa que partiu da nossa demanda, não partiu da demanda do CASA. O CASA falou: eu tenho o dinheiro, qual a sua demanda?” diz Robson.
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