Fortalecendo redes contra o fogo
Por Attilio Zolin – Fundo Casa Socioambiental
Foto de capa: Brigadistas da BRAL em meio a fumaça e neblina após uma noite intensa de combate às chamas. As chuvas voltaram a cair na região da Chapada Diamantina no mês de outubro. – Foto: Açony Santos.
No início de outubro, as chuvas voltaram a cair em boa parte do Brasil, proporcionando alívio após a seca que atingiu várias regiões do país. Segundo o Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas, as secas graves, extremas e excepcionais atingiram especialmente a região Centro-Oeste, mas houve áreas de seca em praticamente todo o país. Junto com a seca extrema vem o fogo, que se espalha facilmente, consumindo a matéria orgânica acumulada, ajudado pelos fortes ventos que estimulam as chamas. Ainda é cedo para calcular a área queimada em 2021, mas sabemos que os números serão próximos ao mensurado no último ano; isso significa que alguns milhões de hectares de florestas viraram cinzas. O desmatamento ilegal, somado às perceptíveis mudanças climáticas, tem tornado a situação cada vez mais grave, ano após ano.
Nenhum incêndio florestal começa grande, sempre existe a primeira fagulha, seja uma ignição espontânea, acidental ou até mesmo criminosa. Combater as chamas enquanto o fogo ainda está pequeno pode evitar que o incêndio se torne incontrolável. Por isso, o papel das brigadas comunitárias e voluntárias é muito importante, pois, na maioria das vezes, são elas que chegam primeiro ao local de combate. O trabalho do Corpo de Bombeiros e do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) é extremamente importante, mas as dimensões continentais do Brasil não permitem que as forças públicas consigam alcançar todos os incêndios. Para piorar, durante a temporada de fogo, vários focos começam a surgir ao mesmo tempo. A seca extrema, as dificuldades logísticas e os incêndios criminosos dificultam ainda mais o trabalho das forças do Estado. Se as comunidades locais estiverem treinadas e equipadas para combater os incêndios ainda no começo, as chances de sucesso aumentam muito.
É por este motivo que, em 2021, o Fundo Casa lançou a Chamada de Apoio a Grupos de Base no Enfrentamento de Emergências Climáticas Provocadas a partir dos Incêndios Florestais. O objetivo desta chamada foi apoiar brigadas e associações comunitárias e tradicionais para a estruturação e fortalecimento de brigadas de combate aos incêndios, manejo integrado do fogo e também para a mobilização, engajamento e denúncias. A Chamada foi aberta em abril de 2021, e 52 projetos de até R$ 30 mil foram selecionados. Os projetos contemplados atuam na Amazônia, Cerrado e Pantanal, os biomas mais atingidos pelas queimadas nos últimos anos. Estes apoios só foram possíveis graças a articulação do Fundo Casa junto aos parceiros financiadores: Wellspring Philanthropic Fund, WWF-Brasil, Amazon Watch, Global Giving e Cotyledon Fund.
Segundo Osvaldo Barassi Gajardo, especialista em conservação da WWF-Brasil e líder do fundo emergencial, “estas ações estão sendo vistas por muitas organizações como uma estratégia super viável para melhorar a resposta frente aos incêndios florestais, pois as brigadas comunitárias e voluntárias, em muitos casos, são a primeira resposta ao combate de incêndios; e quanto mais brigadas houver em campo, mais fácil é atender uma ocorrência antes que vire um grande incêndio. A tendência é que o número de brigadas voluntárias e comunitárias aumente nos próximos anos.” É difícil afirmar quantas brigadas voluntárias existem hoje no Brasil, mas estima-se que mais de 200 brigadas do tipo estejam em atuação em todos os biomas brasileiros.
Com fogo não se brinca
Combater incêndios florestais é coisa séria, é necessário treinamento adequado e equipamentos de proteção específicos, que suportem altas temperaturas. São necessários também equipamentos como abafadores, sopradores, bombas de água, drones, entre outros. Estes equipamentos não são baratos, por isso que o apoio às brigadas é tão importante. Henrique Gironha, brigadista voluntário da Brigada de Resgate Ambiental de Lençóis (BRAL), nos contou um pouco como era o trabalho de combate há mais de 20 anos, quando a instituição foi fundada. Segundo Henrique, “o primeiro fogo combatido aqui foi na década de 90. Não tinha nenhum equipamento para o combate, fui de havaiana e água na garrafa pet de 2 litros. Usamos facão para cortar arbustos de árvore para usar de abafador.” Hoje isso jamais seria permitido. A BRAL cresceu, se tornou referência na região da Chapada Diamantina e segue os protocolos de segurança.
A região da Diamantina foi uma das últimas a receber as chuvas, mas, no meio de outubro, elas chegaram com força, apagando os últimos focos de incêndio que ainda restavam. Segundo André Valladão, vice-presidente da BRAL, o trabalho continua: “Apesar de o fogo ter acabado com a presença das chuvas, nós estamos sempre em alerta, o monitoramento é constante.” Com o apoio recebido do Fundo Casa, a BRAL conseguiu adicionar ao seu inventário um drone, dois sopradores potentes (mais fortes do que os que possuía anteriormente), além dos fundamentais equipamentos de proteção e segurança para os brigadistas, como botas especiais resistentes a altas temperaturas.
O uso de drones para o monitoramento dos incêndios tem se consolidado como uma importante ferramenta, e vários projetos apoiados pelo Fundo Casa usaram o apoio para adquirir o equipamento. Segundo André, “o drone hoje é uma ferramenta indispensável para todas as brigadas, tanto na parte do monitoramento, quando ainda não está tendo fogo, quanto no combate, na localização de pontos de água, ou para identificar a cabeça do fogo, o flanco e a cauda. É uma ferramenta muito importante que está ajudando muito no trabalho das brigadas”.
Açony Santos é fotógrafo e brigadista da BRAL desde 2013. Em suas jornadas de combate ao fogo, registrou imagens incríveis e assustadoras, que ilustram também esta matéria. Segundo Açony, “tem coisas que podem parecer simples, mas para os brigadistas são bem importantes, como as lanternas, que conseguimos adquirir agora. Elas são nossos olhos quando estamos nos combates à noite. As brigadas da Chapada Diamantina são muito conhecidas por combaterem os incêndios à noite, já que é um momento onde temos mais chances de acabar com o incêndio. Durante o dia, é muito quente e dificulta muito, pois o fogo está muito grande. À noite, diminuem as temperaturas. Muitas vezes os brigadistas deixaram de ir para o fogo porque não tinham uma simples lanterna. Essas lanternas fizeram de fato uma diferença muito grande”.
Segundo os brigadistas, o soprador costal é hoje a ferramenta mais eficiente no combate direto ao fogo, uma única pessoa operando um soprador pode fazer o trabalho equivalente a 3 ou 4 pessoas com abafadores comuns. Várias brigadas apoiadas utilizaram o recurso do apoio para adquirir sopradores potentes de última geração. Para Açony, “estes últimos que conseguimos adquirir têm uma potência maior; são um pouco mais pesados, mas a potência que têm faz toda a diferença no combate”.
Mudanças Climáticas
Os últimos anos foram marcados por incêndios de grandes proporções. Estes eventos extremos estimularam a criação de novas brigadas voluntárias, como é o caso da Brigada Voluntária Ambiental de Cavalcante (BRIVAC), em Goiás, que atua na região da Chapada dos Veadeiros. Segundo a brigadista voluntária Carolina Angela Rodrigues, “o grande incêndio ocorrido no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em 2017, foi a oportunidade de organizar, equipar e estruturar o trabalho desses voluntários, onde a BRIVAC cresceu e se tornou um modelo de brigada voluntária”. A BRIVAC recebeu apoio do Fundo Casa e conseguiu adquirir equipamentos de segurança para os voluntários (EPIs) e também um drone. O apoio recebido em abril deste ano ajudou a brigada a se equipar logo no início da temporada de incêndios e já deixa a BRIVAC com uma vantagem também para a próxima temporada.
Para Diego Serrano, brigadista voluntário da BRAL há mais de 10 anos, é visível o aumento da intensidade das secas nos últimos anos, e isso tem agravado muito a intensidade do fogo. Segundo ele, “há uma mudança significativa no padrão das chuvas nos últimos anos, e nós conseguimos perceber isso porque estamos na linha de frente das mudanças climáticas.” Esta percepção também é compartilhada por outros brigadistas de outras regiões, como no Pantanal e Amazônia, biomas conhecidos pela abundância em águas, mas que agora sofrem com as secas severas e assistem a rica fauna e flora queimar todos os anos.
No Pantanal a situação se agravou a partir de 2019, quando começou uma grande seca que se estende até hoje, sem sinais de quando vai acabar. Os incêndios aumentaram tanto na intensidade quanto na frequência. A seca do ano de 2020 trouxe cenários desoladores, segundo relatos das mulheres da Associação de Mulheres Produtoras da APA Baía Negra. Cerca de 70% desta área de proteção ambiental virou cinzas. Na época, a brigada local ainda tinha pouca experiência e não possuía os equipamentos adequados. Apesar da grande força tarefa feita pelo IBAMA, Marinha do Brasil, Corpo de Bombeiros e Prefeitura Municipal, não foi possível conter o fogo, que consumiu barcos das populações ribeirinhas que vivem da pesca e por pouco não atingiu as casas de comunidades da região.
Após o cenário assustador ocorrido em 2020, as comunidades locais começaram a se articular e ir em busca de parceiros que pudessem apoiar o fortalecimento da brigada comunitária. A Associação de Mulheres Produtoras da APA Baía Negra foi uma das organizações contempladas com apoio do Fundo Casa em 2021. Hoje a brigada está muito mais equipada, preparada e com um número maior de voluntários. Agora o trabalho está focado na prevenção, realização dos aceiros (desbaste de uma área com objetivo de evitar a propagação do fogo) e também na sensibilização e educação ambiental com os moradores da região. E está dando certo, até o presente momento não houve nenhuma ocorrência de incêndio dentro da APA Baía Negra neste ano, apesar de o fogo ter chegado muito perto, colocando os brigadistas em alerta.
Na Amazônia, as mudanças climáticas também já geram impactos. Célio Ramos, da Associação dos Produtores Rurais de Banana Entre Rios Sul (APRUBERS), de Entre Rios, Roraima, conta que “há alguns anos havia muita chuva na região, hoje sentimos a diferença”, houve uma mudança no padrão e as chuvas intensas dos meses de dezembro e janeiro, conhecidas na região como chuvas do boiaçú, já não são mais como eram antes. Por este motivo, o período entre dezembro e março tem se tornado o período crítico para os incêndios nesta região do hemisfério norte do Brasil. Em 2015, um grande incêndio na região de Entre Rios queimou lavouras, animais, mata nativa e quase atingiu as casas dos moradores. Com apoio do Fundo Casa, a APRUBERS conseguiu formar uma turma de jovens com apoio do Corpo de Bombeiros, e, apesar de ainda estarem em treinamento, a comunidade já se sente mais preparada para a próxima temporada de incêndios. “Se naquela época a gente tivesse esse conhecimento que hoje adquirimos através do Corpo de Bombeiro com apoio do Fundo Casa, nós não teríamos perdido tanto”, conta Célio.
Brigadas indígenas
Segundo o MapBiomas, as terras indígenas do Brasil são as que mais preservam as florestas, tendo menos de 2% de suas áreas devastadas no período dos últimos 35 anos. Os povos indígenas são os verdadeiros guardiões das florestas e vivem em harmonia com a natureza. Mas, nos últimos anos, nem os territórios indígenas escaparam aos grandes incêndios florestais, e o Território Indígena do Xingu foi afetado. Segundo Takumã Kuikuro, Presidente do Instituto da Família do Alto Xingu (IFAX), “Foi uma coisa muito triste ver o mato queimando. Ano passado (2020) foi mais triste, tiveram incêndios florestais quase no Xingu inteiro. Por este motivo, nós criamos a brigada voluntária. Eu penso que nós temos que cuidar de nossa terra, nossa floresta e nossos recursos naturais, por isso tivemos essa ideia de criar a brigada voluntária. O apoio do Fundo Casa foi fundamental para apoiar os jovens da comunidade e nossa brigada voluntária.” Além da brigada do povo Kuikuro, o Fundo Casa também apoiou nesta chamada outras 14 brigadas comunitárias indígenas que irão ajudar a proteger seus territórios nos próximos anos.
Muito trabalho pela frente
Ao que tudo indica, as brigadas voluntárias espalhadas pelo Brasil ainda terão muito trabalho pela frente e precisam de apoio para se fortalecerem. Como é o caso da BRAL, que, por mais que seja uma brigada consolidada e experiente, ainda passa por algumas dificuldades. Segundo Diego Serrano, “o próximo passo para a brigada seria conseguir ter uma sede própria em Lençóis, pois atualmente a instituição ainda paga aluguel. Ter um carro próprio para o transporte dos brigadistas também seria algo importante, pois dependemos de voluntários que emprestam os carros para transporte quando existem os eventos de fogo”.
Apesar de todo o esforço do Fundo Casa em mobilizar recursos em tempo hábil para evitar as queimadas, e apesar de ter conseguido resultados positivos como esses descritos aqui, ainda chegamos tarde em muitos territórios. Foi um esforço extremo o que fizemos, e, felizmente, conseguimos sensibilizar parceiros muito especiais. Mas sabemos que no ano que vem precisamos iniciar esses apoios muito antes, para realmente sermos capazes, como sociedade, de parar os incêndios antes que mais tragédias aconteçam. Com estas histórias lindas e corajosas, esperamos sensibilizar mais pessoas e financiadores que se importam com nossos ricos e importantes biomas. Este foi apenas o primeiro ano de apoios focados nas brigadas comunitárias. Esperamos que em breve outros parceiros juntem-se a nós nesta causa e que novas brigadas voluntárias sejam formadas e equipadas apropriadamente, em todos os importantes biomas do Brasil. Pois não existe nenhuma outra forma de evitar que esses incêndios se espalhem, além do trabalho corajoso e imprescindível das populações locais, e os brigadistas voluntários que, apesar de todos os perigos, dedicam suas vidas a proteger nossos tesouros naturais.