24.02.2023

Os desafios para uma transição energética justa no Nordeste

A pressa da emergência climática não pode ser justificativa para o desrespeito aos direitos de comunidades locais e tradicionais

Por Attilio Zolin/Fundo Casa Socioambiental

A transição energética é urgente e necessária. A humanidade precisa diminuir a sua dependência das matrizes energéticas de origem fóssil e migrar para outras fontes que emitam menos gases de efeito estufa. A mudança é imprescindível para evitar que a temperatura média do planeta continue a aumentar, provocando efeitos ainda mais devastadores para os ecossistemas e também para as populações mais vulneráveis aos impactos de eventos climáticos extremos.

O mundo mira nas fontes renováveis como solução, e os investidores também. O setor deve receber cifras bilionárias nos próximos anos, com grande adesão e incentivo por parte dos governos locais que desejam receber estes recursos. Segundo o relatório Energy Transition Investment Trends da revista estadunidense Bloomberg, o investimento internacional na transição energética chegou a US $755 bilhões em 2021, crescendo quase 30% no ano seguinte. No meio disso tudo, o Brasil figura em destaque como destino para estes recursos, especialmente a região Nordeste, que possui grande incidência solar o ano todo e muito vento em seu litoral, condições perfeitas para geração de energia solar e eólica.

Pôr do Sol em Enxú Queimado, comunidade pesqueira afetada com a especulação relacionada a empreendimentos de energia eólica. Foto: Joelma Antunes

Recentemente, em visita ao Brasil, o Chanceler alemão Olaf Scholz anunciou o grande interesse de seu país nas energias renováveis brasileiras, anunciando uma inédita parceria entre os países para a produção de hidrogênio verde, um tipo de combustível que pode ser exportado para ajudar os alemães a enfrentarem a atual crise energética, sem comprometer suas metas climáticas. A expectativa é que o hidrogênio verde movimente um mercado de 1 trilhão de dólares no mundo. No Brasil se espera que a exportação possa alcançar os R$150 bilhões. A primeira fábrica de hidrogênio verde no Brasil já começou a sua produção em São Gonçalo do Amarante, no Ceará, e outra fábrica está sendo construída na Bahia.

Porém, pouco ainda é falado sobre os impactos que os grandes empreendimentos de energias renováveis estão causando em comunidades locais e tradicionais. Em regiões estratégicas para a implementação de parques solares e eólicos, como no Nordeste brasileiro, são inúmeros os casos de desrespeito aos direitos destas comunidades, que não se opõem frontalmente à transição energética, mas exigem que a transição seja pensada com cuidado. O Fundo Casa Socioambiental e seus parceiros estão buscando caminhos para que a tão necessária transição energética seja feita de forma justa para todo mundo, inclusive para o meio ambiente e para as comunidades que vivem nestes territórios. 

Buscando fortalecer o diálogo e trazer informações sobre o assunto, quatro organizações da sociedade civil se juntaram para a criação de uma iniciativa coletiva que discute e analisa diversos aspectos que envolvem a implementação de empreendimentos de energias renováveis no Nordeste. O trabalho conjunto entre Centro Brasil no Clima, Fundo Casa Socioambiental, Grupo Ambientalista da Bahia e Instituto ClimaInfo, com apoio do Instituto Clima e Sociedade, resultou na criação do Plano Nordeste Potência. Criado em 2022, o Plano tem como objetivo promover o debate público sobre a recuperação econômica pós-pandemia no Nordeste sob bases verdes, justas e inclusivas, em um sistema que traga benefícios para todos os estratos da sociedade.

Apenas no Rio Grande do Norte, já são quase 3 mil turbinas em operação, que formam um verdadeiro mar de cata-ventos no horizonte. Foto: Joelma Antunes.

De acordo com o Plano, os empreendimentos outorgados na região Nordeste pelo governo federal representam 66 GW, quase 5 Itaipus de potência energética. Deste total, uma parte é relativa à produção de energia fotovoltaica (solar) e a maior parte deverá vir das eólicas. Há também a expectativa que o equivalente a mais 3 Itaipus poderão ser adicionados em eólicas offshore, que são torres instaladas diretamente no mar. O Plano defende, por exemplo, que os impactos ambientais locais sejam avaliados e mitigados. Áreas degradadas e abandonadas, quando não prioritárias para recuperação, conservação e uso tradicional, devem ser as escolhidas para receber novas centrais e linhas de transmissão. O licenciamento ambiental deve considerar os cenários futuros para a região, além de trabalhar com a melhor e mais recente tecnologia existente. 

O Plano também defende a urgente revitalização da bacia do Rio São Francisco. O rio é chave para a expansão das renováveis e as hidrelétricas servem como complemento para as fontes variáveis, ou intermitentes, como a eólica e a solar. Cerca de 50% da superfície de água natural do rio sumiu nos últimos 30 anos e 3,3 milhões de hectares precisam ser recuperados em reservas legais e APPs em sua bacia. A manutenção das águas do São Francisco é importante também para manter o perfil limpo de emissões de gases estufa do setor elétrico brasileiro, evitando a entrada de usinas térmicas baseadas em fontes fósseis, como gás e carvão, para compensar os períodos de crise hídrica. 

Como os grandes empreendimentos eólicos impactam comunidades locais e tradicionais no Nordeste brasileiro

Atualmente, o Brasil já conta com mais de 800 parques eólicos e quase 10 mil turbinas eólicas em operação. Só no Rio Grande do Norte, são quase 3 mil turbinas que formam um verdadeiro mar de cata-ventos no horizonte, uma paisagem no mínimo curiosa que pode render fotos interessantes, mas para muitos moradores locais, esta visão é um verdadeiro pesadelo. 

Um exemplo recente de mal planejamento e consequências desastrosas envolvendo empreendimentos de energias renováveis são as hidrelétricas na Amazônia. Com um discurso que prega produção de “energia limpa”, a construção dessas hidrelétricas foram realizadas utilizando métodos nada limpos, provocando impactos profundos e irreparáveis nos ecossistemas e na vida de comunidades indígenas e ribeirinhas que viviam em harmonia com a floresta e os rios, alagando áreas imensas de florestas e até mesmo gerando grandes quantidades de gases estufa neste processo. Este modelo desastroso, dadas as devidas proporções, está sendo reproduzido no Nordeste, onde vemos a repetição do mesmo padrão de desrespeito às comunidades e ao meio ambiente. 

Em alguns casos, os aerogeradores estão perigosamente próximos a comunidades, gerando uma série de impactos nessas populações. Foto: Joelma Antunes

Para Renato Cunha, engenheiro especialista em gestão ambiental e planejamento energético, “é fundamental trabalhar na transição energética no atual momento do planeta, mas essa transição tem que ser feita com maior cuidado, tudo tem que ser feito com transparência e participação das comunidades”. Renato, também é Coordenador Executivo do Grupo Ambientalista da Bahia, o Gambá, além de ser o atual Presidente do Conselho Deliberativo do Fundo Casa. A maioria dos projetos de energias renováveis já começa cometendo erros, e não levam em consideração os direitos humanos e da natureza, segundo Renato, “não se identifica que ali tem comunidades, tem pessoas que moram, trabalham e vivem naquele território, que existem nascentes, biodiversidade, e que para implementar o projeto essa vida presente no território será impactada. A primeira coisa que precisa ser feita é a identificação desses impactos, e isso não vem acontecendo.” 

Muitos parques eólicos foram instalados perigosamente próximos a locais habitados e o excesso de ruídos e as luzes constantes podem provocar nos moradores aquilo que alguns cientistas já nomeiam como “Síndrome da turbina eólica”. Esta Síndrome pode causar sintomas como: insônia, náuseas, dores de cabeça, entre outros. Os relatos de moradores locais também descrevem impactos causados em aves migratórias, cardumes de peixes, abelhas e outros animais que aparentemente se sentem afugentados pelas enormes pás das turbinas e torres que podem chegar a mais de 80 metros de altura. 

No presente momento, uma das maiores frentes de expansão da energia eólica no Nordeste são os empreendimentos offshore, em que as torres serão fixadas diretamente no fundo do mar. A instalação dessas turbinas será feita em locais onde o mar não é tão profundo, justamente nas áreas em que os pescadores artesanais costumam utilizar para sua pesca. Apesar de inédito no Brasil, as negociações e autorizações para este tipo de projeto já estão em processo avançado, o que não se sabe ainda é o tamanho do impacto que este novo modelo trará para a região e para as comunidades pesqueiras. 

Pescadores participam de ação na Câmara de Vereadores de Itapipoca, no Ceará, se posicionando contra a implantação de parques eólicos no mar. Foto: Vylena Souza.

Os projetos offshore se sobrepõem aos territórios da pesca artesanal, e isso afetará as dinâmicas de várias comunidades tradicionais pesqueiras, impactando no modo de vida tradicional e ameaçando a segurança alimentar e financeira dessas famílias. Estes territórios são fundamentais para a existência e alimentação destas comunidades, assim como foram para seus antepassados que ali se firmaram. A incapacidade de acessar áreas pesqueiras importantes poderá resultar na expulsão de comunidades inteiras de seus territórios.

É esperado que muitos empregos possam ser criados no Nordeste nos próximos anos com a expansão das plantas eólicas e solares, porém, este suposto benefício também é um argumento questionado pelas comunidades locais. Os empreendimentos geram muitos empregos imediatos em sua construção, mas em sua maioria são vagas provisórias e a oferta diminui assim que as obras estão finalizadas. Com as plantas em operação, o trabalho ofertado é destinado a profissionais extremamente qualificados, como engenheiros e técnicos, que muitas vezes são provenientes de outras cidades ou países. Além disso, a grande movimentação de trabalhadores em regiões antes consideradas pacatas, traz consigo problemas sociais que antes não existiam nas comunidades, como a violência e a prostituição.

Caminhos para uma transição justa

Ao mesmo tempo em que os empreendimentos avançam, organizações locais procuram levar informação para empoderar as comunidades, como é o caso do Coletivo Cirandas, que com apoio do Fundo Casa está realizando mapeamentos colaborativos em comunidades que estão nos territórios cobiçados para a geração de energia. O mapeamento colaborativo é uma técnica de cartografia social e participativa, em que os próprios membros da comunidade ajudam a mapear o seu território, de acordo com seus conhecimentos tradicionais passados de geração em geração. Com esse mapeamento em mãos, a comunidade fica mais preparada para elaborar as suas estratégias de defesa dos territórios pesqueiros.

Realização do mapeamento colaborativo com pescadores em Enxú Queimado, município de Pedra Grande, litoral do Rio Grande do Norte. Foto: João Paulo Diogo

Segundo João Paulo Diogo, um dos coordenadores do Coletivo Cirandas, os contratos implementados por empreendimentos eólicos que foram analisados são “incompatíveis com os modelos de produção de energia socioambientalmente responsáveis”. Entre os impactos causados nas comunidades, João cita a limitação do acesso dos moradores a lugares importantes para a manutenção de seu modo de vida tradicional, cisternas comprometidas, impactos na fauna local e também interferências causadas pelas torres que afetam a comunicação via celular e também o sinal de TV aberta. 

Para João, “as empresas e o governo devem pensar o setor de forma conjunta construindo regras de negócio que oportunizem um ambiente seguro e sustentável para o setor de produção de energia eólica”. A sociedade civil cobra para que haja a construção de salvaguardas que protejam as comunidades de agressões, de compensações para as comunidades que já foram impactadas e também de planos de mitigação para remediar os danos ao meio ambiente. Até o presente momento, pouco ou nada foi feito neste sentido. Estes mecanismos de defesa e cuidado precisam ser discutidos e construídos conjuntamente e com participação das comunidades, é nisso que o Fundo Casa e seus parceiros estão trabalhando atualmente, buscando soluções participativas para os enormes desafios. 

João Paulo Diogo, é um dos coordenadores do Cirandas, mestrando em Estudos Urbanos e Regionais (UFRN) e Especialista em Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais (UFBA). Foto: Joelma Antunes.

Entre as ferramentas de participação social que já foram levantadas e são sugeridas pelo Plano Nordeste Potência estão a criação de fóruns permanentes de debate e direcionamento da instalação das centrais solares e eólicas, a garantia de direitos de identidade e permanência sobre o território, a democratização da informação sobre projetos e linhas de transmissão e a definição de novos indicadores e cadeias de responsabilidades de prestadores de serviços de instalação das centrais em diálogo com a sociedade. O cumprimento destas condicionantes é imprescindível para que a expansão dos parques eólicos e solares não provoquem e repitam injustiças e a violação de direitos.

E por fim, é necessário pensarmos em outras soluções, caminhos alternativos, especialmente os que envolvem a produção descentralizada, para facilitar que cada vez mais pessoas possam ter em seus lares sistemas locais de produção de energia elétrica, seja por painéis fotovoltaicos em seus telhados ou pequenas turbinas eólicas. Não só nas casas, mas também em prédios públicos e empresas de todos os tamanhos, inclusive as rurais. Estas iniciativas descentralizadas também podem contribuir para a geração de empregos mais justos e duradouros, formando e capacitando as populações locais. Se a transição energética é inevitável em tempos de emergência climática, o desrespeito às comunidades pode e deve ser evitado. É necessário que haja diálogo, escuta e participação para que as novas matrizes energéticas sejam verdadeiramente justas para todos. O desafio está posto, cabe a nós a construção das soluções.

 

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