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Cerrado precisa de recursos para sobreviver, e a Filantropia Comunitária pode ser um caminho
Formato inovador de doação de recursos valoriza conhecimento e fortalece práticas de povos e comunidades tradicionais cerratenses
A Filantropia Comunitária pode fortalecer práticas e valorizar conhecimentos e saberes de povos e comunidades tradicionais do Cerrado, mas, para isso, precisa receber um maior volume de apoios e recursos financeiros que sejam acessados e geridos por comunidades de forma desburocratizada.
Essa foi a conclusão do debate “Diálogos sobre a importância da filantropia comunitária na conservação do Cerrado e da cultura de seus povos”, realizado pelo ISPN e pelo Fundo Casa Socioambiental, com apoio da Rede Comuá, durante o X Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, em setembro.
“Processos de doação desburocratizados facilitam o acesso a recursos, e é preciso ter em mente que as comunidades são parte essencial da tomada de decisão: elas têm autonomia para decidir como os projetos serão implementados”, explica Jonathas Azevedo, assessor de programas da Rede Comuá, uma rede de Filantropia Comunitária e de Justiça Social da qual fazem parte o ISPN e o Fundo Casa.
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Na mesa, Jonathas Azevedo (Rede Comuá), Isabel Figueiredo (ISPN/PPP-ECOS), Mercedes Bustamante (UnB), Rodrigo Montaldi (Fundo Casa) e Luciene Dias (Fundo Babaçu). (Foto: Denise Farias/Fundo Casa Socioambiental)
Parte da programação do Mês da Filantropia Que Transforma, que busca dar visibilidade às práticas da filantropia comunitária nas cidades e nos territórios, o evento contou com a participação da atual presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Mercedes Bustamante, que é bióloga e especialista em mudanças climáticas.
“Um encontro como esse, com tantas entidades presentes, é capaz de desenhar uma cesta de estratégias para conservar nosso Cerrado”, declarou a pesquisadora, acrescentando que, com o avanço das mudanças climáticas, é preciso “desenhar soluções customizadas para diferentes regiões”.
Ao lado de Mercedes, Jonathas acrescentou que “fortalecendo a sociedade civil, a gente fortalece a agenda de acesso a direitos e, consequentemente, a democracia”. Para ele, a reunião de membros da Rede Comuá significa “reafirmar esse posicionamento político”.
Compuseram a mesa ainda Sueli Gomes, assistente técnica do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAAV), de Minas Gerais, beneficiária do Fundo PPP-ECOS (cuja sigla significa Promoção de Paisagens Produtivas Ecossociais), do ISPN, Francisca Ramos de Souza, vice-presidente do Instituto de Ações Socioambientais (INASA), no Maranhão, e Elisangela, da Brigada Apinajé, ambas beneficiárias do Fundo Casa Socioambiental.
Representando fundos que promovem a Filantropia Comunitária, estavam Luciene Dias, secretaria do Fundo Babaçu, Marinalda Rodrigues, coordenadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), Isabel Figueiredo, coordenadora do Fundo PPP-ECOS, e Rodrigo Montaldi, gestor de programas do Fundo Casa Socioambiental. A mediação da mesa foi feita por Cristiane Azevedo, diretora superintendente do ISPN.
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Cristiane Azevedo, diretora superintendente do ISPN, fez a mediação do debate (Foto: Yan de Pádua/Fundação Banco do Brasil)
Também estiveram presentes empresas, institutos e fundações que financiam iniciativas comunitárias, como a Fundação Banco do Brasil, o Banco Mundial, o Climate and Land Use Alliance (CLUA), a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), o Instituto Humanize, o Instituto Bancorbrás, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Instituto Sabin, o World Wide Fund for Nature (WWF), o Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (FunBEA), a Fundação AVINA, a Caixa Econômica Federal e o Correio Brasiliense.
Marco Lemos, da Fundação Banco do Brasil, ao apresentar o trabalho desenvolvido pela entidade, disse que está em curso um processo de planejamento estratégico para o próximo ciclo de apoios e que há também um esforço de atuação com redes locais, para dar mais capilaridade aos recursos. “A partir da articulação em rede, conseguimos chegar nas bases”, disse.
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Marco Cirilo, representante da Fundação Banco do Brasil (Foto: Denise Farias/Fundo Casa Socioambiental)
Filantropia comunitária na prática
No Bico do Papagaio, estado do Tocantins, uma Brigada Voluntária Feminina Apinajé foi criada entre mulheres indígenas apinajé para combater o fogo e cuidar da Terra Indígena. É preciso “manter a mata em pé para que nossas crianças e netos possam viver com aquela natureza”, explica a brigadista Elisângela Dias, do povo apinajé. E também para que haja possibilidade de caça e pesca por ali, complementa.
Iré, nome da brigadista no idioma de seu povo, explica que a reserva em que habita tem mais de cem nascentes e oito ribeirões limpos, graças ao cuidado de quem mora no território.
A Brigada só pôde ser criada com o apoio do Fundo Casa Socioambiental, que disponibilizou R$30 mil para compra de equipamentos de combate a incêndios. A iniciativa de mulheres apinajé tem colaborado ainda com o trabalho de outras brigadas vinculadas ao Ibama, que são poucas, “já que às vezes tem muito fogo e eles não dão conta”, diz Iré.
“Estamos ali para ajudar pelo amor à terra e à natureza”, acrescenta. Segundo ela, o trabalho tem fortalecido as mulheres apinajé e inspirado as meninas da comunidade.
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Rodrigo Montaldi, do Fundo Casa Socioambiental, ao lado de Elisângela Dias “Iré”, da Brigada Voluntária Feminina Apinajé (Foto: Denise Farias/Fundo Casa Socioambiental)
Para Rodrigo Montaldi, representante do Fundo Casa, “as comunidades de base precisam ser apoiadas porque são elas que garantem a proteção dos territórios, dos biomas, a conservação ambiental e o equilíbrio climático”.
Desburocratizar é preciso
Sueli, do CAAV, explica que um financiamento desburocratizado dá autonomia para comunidades e suas associações construírem propostas próprias e gerirem seus próprios recursos.
A assessora técnica conta que sua região, no Vale do Jequitinhonha, convive com extensas áreas de monocultivos de eucalipto e que, diante deste cenário, “a Filantropia Comunitária tem nos dado condição de sensibilizar comunidades sobre o impacto desse monocultivo e de propor alternativas para a escassez hídrica e degradação das terras”.
Beneficiária do PPP-ECOS, ela cita ainda a possibilidade de acessar mercados e de fortalecer institucionalmente associações comunitárias, acrescentando que tal fundo é um dos poucos que permite uma gestão mais flexível dos recursos.
Uma outra característica de entidades comunitárias é que parte delas não são formalizadas, o que gera uma dificuldade na busca por recursos. Nesse sentido, Francisca, do INASA, argumenta que “é muito bacana estar falando de Filantropia Comunitária”, já que esse tipo de iniciativa permite a prestação de serviço entre uma entidade formalizada e uma não formalizada.
Ela conta que, desde 2006, o INASA busca oportunidades por meio de editais, mas que são difíceis de acessar. No ano anterior, a equipe chegou a pensar em destituir a própria organização, mas foi quando conheceram a filantropia comunitária. “Confiança deve ser a base entre as comunidades, para que uma entidade parceira formalizada preste serviço para uma não formalizada e assim mais pessoas e projetos possam ser beneficiados com o recurso.”
Recurso gera renda
Na “ponta da cadeia” da filantropia comunitária, o CAAV, por sua vez, mantém um Fundo Rotativo Solidário, estimulando que novos atores comunitários possam acessar crédito para geração de renda.
E é afinal o acesso a recursos que permite a geração de renda em territórios onde outras formas de apoio não chegam, diz a vice-presidente do INASA. Para ela, quando a comunidade está fortalecida, o bioma se fortalece: “a gente consegue manter as plantações mais verdes e é possível respirar melhor”.
“Quando a gente tem recurso, podemos promover atividades dentro da comunidade, criando vínculo entre famílias e o envolvimento da juventude na execução de projetos”, explica. “As pessoas beneficiadas tendem a fazer o reflorestamento de plantas nativas buscando manter a floresta em pé.”
Além disso, lembra, a falta de recursos gera êxodo rural: a pessoa precisa se deslocar para centros urbanos em busca de renda e subsistência.
No Piauí, o Fundo Babaçu atua pelo fortalecimento econômico de mulheres quebradeiras de coco babaçu, também como uma forma de conservação do Cerrado. Para extrair o coco, elas não derrubam nenhuma palmeira e nenhuma árvore nativa de dentro do território: “sem o babaçu de pé não há vida”, destaca Marinalda, do MICQB.
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Marinalda Rodrigues, coordenadora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu e Luciene Dias, secretaria do Fundo Babaçu (Foto: Denise Farias/Fundo Casa Socioambiental)
Sem Cerrado não há Amazônia
Quando se fala em apoio à conservação de biomas, outro aspecto que chama atenção é a quantidade de recursos concentrados na Amazônia em detrimento do Cerrado – e dos demais biomas.
“Há uma visão entre financiadores e a filantropia internacional de que a Amazônia é a grande responsável pelo equilíbrio ecológico e climático do planeta”, argumenta Rodrigo do Fundo Casa. É fato, diz ele, que há uma enorme importância do bioma amazônico, mas que todos precisam estar de pé para conservar o meio ambiente e frear as mudanças climáticas.
Isabel Figueiredo, do ISPN, resume que sem Cerrado não há Amazônia, os biomas são interligados entre si e é preciso trazer a atenção para a nossa savana, tão desmatada e ao mesmo tempo tão importante por sua sociobiodiversidade e pela provisão de águas ao país.
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Isabel Figueiredo, coordenadora do Fundo PPP-ECOS, do ISPN (Foto: Denise Farias/Fundo Casa Socioambiental)
O problema de olhar apenas para um bioma é que os recursos financeiros para iniciativas socioambientais acabam todos sendo direcionados ao norte. Em 2022, por exemplo, 52% dos recursos doados pelo Fundo Casa foram para a Amazônia Legal.
Ao longo de sua história, desde 2005, o Fundo Casa apoiou 972 projetos na Amazônia e áreas de transição adjacentes, e 461 no Cerrado, considerando áreas adjacentes. Enquanto R$32,6 milhões foram destinados à Amazônia, apenas cerca de R$13 milhões foram para o Cerrado. Na maior parte dos casos, o destino destes recursos é previamente indicado pelos financiadores – a discrepância entre os valores destinados aos dois biomas demonstra que é necessário um olhar mais atento ao Cerrado.
Cenário crítico
De 2006 a 2019, a mudança do uso do solo, antes dominado por árvores e convertido em áreas de pastagens e monocultivos, resultou na redução da evapotranspiração anual em 10%, reduzindo assim a umidade do ar.
Outro impacto desse desmatamento é o aumento da temperatura do bioma em 0,9ºC, segundo a pesquisa Implicações do estresse térmico para a saúde da força de trabalho no Brasil (disponível em inglês).
“Sustentabilidade não é apenas uma opção, mas um imperativo para o Cerrado”, declara Mercedes, acrescentando que é preciso “ações estruturantes e emergenciais para lidar com o bioma”.
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Mercedes Bustamante é pesquisadora da UnB e especialista em mudanças climáticas (Foto: Denise Farias/Fundo Casa Socioambiental)
“A gente não pode esperar e nem errar mais com esse bioma tão especial”, afirma, ao demonstrar que a brusca mudança do uso do solo do Cerrado para pastagens e monoculturas, já o deixou “mais seco e mais quente” – e que esse “estresse térmico” também afeta a saúde de trabalhadores da região.
Os efeitos desse desequilíbrio ambiental já estão sendo sentidos pela sociedade, e não é de hoje. O tempo urge e há uma série de ações que devem ser tomadas para impedir que as mudanças climáticas impactem ainda mais a vida da população.
Apoiar organizações comunitárias de povos e comunidades tradicionais com investimento social privado, nacional e internacional, é um caminho importante para contribuir com a mitigação e adaptação deste cenário e para o alcance da justiça socioambiental.
*Texto por Camila Araujo/Assessora de Comunicação ISPN.