07.05.2025

Justiça ambiental na bacia do Rio Madeira: o desafio da permanência

Comunidades atingidas por barragens se organizam para enfrentar violações e construir alternativas sustentáveis na Amazônia.

O Rio Madeira corre há séculos, moldando a paisagem e a vida da região que atravessa. Pulsa vida, alimenta povos, guarda histórias e sonhos. Mas esse curso tem sido desafiado por grandes empreendimentos que alteraram drasticamente sua dinâmica. No entanto, onde há resistência, há esperança.

A construção de barragens, como as de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, na década de 2000, modificaram o ritmo das águas, resultando no alagamento de áreas inteiras, na remoção forçada de comunidades ribeirinhas, no desaparecimento de espécies e no aumento de doenças ligadas às águas represadas. Um território antes marcado pela fartura e autonomia viu crescer a escassez, a insegurança e a dependência. 

Diante desse cenário, surgiu e se fortaleceu a resistência: movimentos socioambientais como o Instituto Madeira Vivo (IMV) vêm atuando há quase 20 anos para enfrentar os impactos, defender direitos e construir alternativas sustentáveis junto às populações da bacia do Madeira.

Nesse contexto, surgem vozes que se recusam a silenciar. Uma delas é a do ambientalista e historiador Iremar Antônio Ferreira, fundador e diretor do Instituto Madeira Vivo (IMV) e membro do conselho deliberativo do Fundo Casa Socioambiental, Iremar tem dedicado sua trajetória à defesa dos direitos socioambientais da Amazônia, especialmente na bacia do Rio Madeira. Atuando desde a década de 1980 ao lado de povos tradicionais, ele é hoje uma referência nas articulações transfronteiriças por justiça ambiental.

Com o apoio do Fundo Casa Socioambiental e de outras iniciativas da filantropia socioambiental, os movimentos em defesa do Rio Madeira vêm fortalecendo sua capacidade de organização, mobilização e denúncia. Desde o início, estamos ao lado dessas lutas, apoiando o que mantém a resistência viva: logística, alimentação, registro das histórias, formação, apoio técnico e jurídico.

Mais do que resistir, os coletivos constroem permanências: garantem memória, dignidade e direitos. Os apoios sustentam corpos, ideias e alianças. Permitem que vozes locais alcancem fóruns nacionais e internacionais, que práticas comunitárias ganhem força e que alternativas sustentáveis, como a energia solar, se tornem realidade.

Projetos apoiados pelo Fundo Casa como “Fortalecendo a Aliança dos Rios Panamazônicos” e “Construindo a Resistência na Panamazônia” mostram caminhos possíveis e conectam Brasil, Bolívia e Peru em torno de saberes compartilhados. A memória da enchente de 2014, que afetou mais de 30 mil famílias, segue presente nas lutas por reparação. Ao denunciar o passado, as comunidades também constroem o futuro.

Nesta entrevista, o fundador do Instituto Madeira Vivo (IMV), Iremar Antônio Ferreira, compartilha sua trajetória e reflexões sobre os impactos das hidrelétricas e a importância das alianças entre comunidades e organizações filantrópicas na defesa do rio e de seus territórios.

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Entrevista

Iremar Antônio Ferreira é uma das vozes mais ativas na defesa dos direitos socioambientais na Amazônia. Fundador do Instituto Madeira Vivo, ele atua há décadas ao lado de comunidades tradicionais denunciando injustiças e fortalecendo soluções comunitárias para os territórios.

1- O Instituto Madeira Vivo surgiu em um contexto de fortes impactos ambientais e sociais na região. Como vocês percebem a evolução desses desafios ao longo dos anos?

Iremar: O Instituto Madeira Vivo nasceu em 2006 como uma ferramenta de suporte administrativo e financeiro para a campanha popular Viva o Rio Madeira Vivo, que enfrentava a proposta do inventário e, posteriormente, o licenciamento do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira. O instituto surgiu para dar suporte a essa campanha, que era composta por diversas organizações da sociedade civil, incluindo movimentos indígenas, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), entre outras.

Na época, a implementação da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) avançava pelo eixo amazônico na Bacia do Rio Madeira, dentro do plano do governo para a construção do complexo hidrelétrico. O projeto original previa três grandes hidrelétricas e uma hidrovia, mas foi fragmentado, começando pelas usinas de Santo Antônio e Jirau.

Esse contexto também era marcado por um rápido avanço do desmatamento em Rondônia, impulsionado pelo agronegócio, principalmente a pecuária. Assentamentos estavam sendo engolidos pelo crescimento das pastagens, e territórios protegidos sofriam invasões, como a Reserva Extrativista Jaci-Paraná e as áreas ao sul da Terra Indígena Karipuna. Além disso, na divisa com o Amazonas e o Acre, havia uma corrida intensa pela madeira, pois os estoques no restante do estado já estavam escassos.

Hoje, essa situação não mudou significativamente. O complexo hidrelétrico segue em pauta, com projetos para a construção de mais duas grandes usinas – Ribeirão e Yata II, ambas em áreas de fronteira com a Bolívia. Além disso, Porto Velho, que no início do projeto hidrelétrico não era um polo agrícola expressivo, tornou-se o município líder na expansão da produção de soja em Rondônia desde 2023. Isso impulsiona ainda mais a agenda da hidrovia para escoamento da produção, tanto do lado brasileiro quanto do lado boliviano. Esses são exemplos da evolução desse modelo de desenvolvimento, que segue promovendo impactos socioambientais profundos na região.

2- As comunidades ribeirinhas e indígenas do rio Madeira têm um papel fundamental na defesa do território. Como é o envolvimento dessas populações nas ações do movimento?

Iremar: O Instituto Madeira Vivo nasceu como uma ferramenta de apoio para organizações e movimentos sociais conduzirem essa campanha. Após o período mais intenso de enfrentamento ao inventário e às audiências públicas, o Instituto continuou sendo uma referência no tema dos impactos das hidrelétricas, junto com o Movimento Atingidos por Barragens (MAB).

Nesse contexto, passamos a atuar na organização das comunidades ribeirinhas e indígenas, especialmente nas regiões de fronteira, como Guajará-Mirim. Esse processo de articulação, em um primeiro momento, conseguiu envolver não só organizações indígenas regionais, mas também a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), que entrou nesse enfrentamento considerando os impactos rio abaixo. Foi fundamental manter essa articulação para garantir que a pauta desses projetos não fosse esquecida. Além disso, promovemos intercâmbios com outras bacias hidrográficas da Amazônia, fortalecendo a troca de experiências e estratégias de resistência.

Em 2009, criamos a Aliança dos Quatro Rios – Madeira, Teles Pires, Tapajós e Xingu –, com o objetivo de ampliar essa resistência. Posteriormente, o Rio Juruena também se integrou ao movimento. Essa articulação permitiu exercer pressão em Brasília, e em diversas ocasiões conseguimos levar essa pauta até a Casa Civil, junto com outras lideranças da Amazônia. Lutamos para barrar projetos como Belo Monte e o complexo hidrelétrico do Tapajós. 

Não nos limitamos apenas ao nosso território. Em 2012, levamos esse debate para a Rio+20, apresentando um modelo de gestão autônoma junto com outros movimentos. Esse trabalho culminou no lançamento da Aliança dos Rios da Pan-Amazônia, ampliando a luta para além das fronteiras nacionais e fortalecendo as articulações com outros países amazônicos.

Hoje, na Bacia do Madeira, seguimos com um forte processo de articulação por meio do COMVIDA – Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Madeira. Esse comitê, que reúne diversas organizações e movimentos sociais, se consolidou como uma ferramenta essencial para fortalecer a incidência política e territorial. 

3- Conseguir apoios para as lutas socioambientais nem sempre é fácil. Quais têm sido os maiores desafios para garantir recursos e fortalecer a resistência das comunidades do rio Madeira? E de que forma o apoio de organizações como o Fundo Casa Socioambiental tem contribuído para fortalecer o movimento?

Iremar: O Instituto Madeira Vivo nasceu com o apoio do Fundo Casa, entre 2006 e 2007, mais precisamente em 2006, quando criamos a parte institucional, contamos com esse apoio. Desde o início, enfrentamos o desafio de alimentar um processo didático sobre o que é um movimento social, o que significa fazer resistência e como mobilizar as pessoas. Mas encontramos no Fundo Casa uma parceria constante para não deixar a peteca cair. 

A partir daí, conseguimos fortalecer coletivos locais. Por exemplo, em Jací-Paraná, em Rondônia, trabalhamos com um coletivo de pescadores para elaborar um projeto, por meio do Fundo de Desenvolvimento de Cidadania da Petrobras, voltado à criação de peixes em tanque-rede. Esse projeto, desenvolvido entre 2008 e 2009, foi ameaçado pelas hidrelétricas e, em 2011, foi exterminado pela formação do Lago de Santo Antônio.

Sempre tivemos essa preocupação de fortalecer as organizações do território. O Instituto Madeira Vivo é composto por professores, indígenas, pescadores, estudantes e pessoas de diversas áreas do conhecimento, mas todas pertencentes ao território. Essa diversidade nos levou a fortalecer diferentes iniciativas com a personalidade jurídica do Instituto. 

Nosso acesso a recursos sempre foi um desafio. Por sermos uma organização pequena, com capacidade financeira e gerencial limitada, buscamos apoio em pequenos fundos. Acreditamos que é preciso começar pequeno para ganhar volume, força e mobilização. E é assim que seguimos até hoje.

4- Os movimentos socioambientais frequentemente enfrentam pressões e ameaças. Como o Madeira Vivo lida com esses desafios e se organiza para seguir na luta? E, ao longo dos anos, quais foram as conquistas mais significativas do movimento?

Iremar: No campo da pressão e ameaça, nós sentimos isso muito fortemente na época dos enfrentamentos com as hidrelétricas, porque eu, particularmente, e não só eu, mas também colegas do MAB, recebemos interditos proibitórios nos impedindo de acessar as áreas de interesse das hidrelétricas no processo de conscientização das comunidades. A ameaça de sermos presos a qualquer momento, caso acessássemos esses territórios, era iminente. Isso limitava nossa ação por conta dessa pressão, mas não nos tirou do território.

Ao contrário, continuamos procurando caminhos para fazer essa incidência e expor, inclusive, os empreendedores e as empresas publicamente. Eles falavam tanto em transparência, tanto em fazer diferente aqui no Rio Madeira, mas estavam agindo da mesma forma que em outras regiões, na base da pressão para calar lideranças. Enfrentamos esses tipos de ameaças expondo-os ao público e não fazendo nada sem transparência, justamente para evitar qualquer tipo de retaliação.

Foi graças a essa nossa persistência que, no meu caso, eles próprios retiraram o interdito proibitório dois anos depois. Do início de 2008 até 2010, fiquei sob esse interdito proibitório, mas, a partir daí, não senti mais pressão direta deles. No entanto, também não conseguimos avançar nas pautas de negociação em torno dos direitos da comunidade. Houve muita aceitação das propostas, mas sem execução, o que também é uma prática para silenciar e dificultar a nossa resistência.

Uma grande conquista para nós foi a constituição da Organização Coletiva dos Pescadores de Jaci-Paraná. Isso deu força política à resistência e levou, por tabela, a uma série de ameaças às lideranças da região. Tivemos até execuções. Embora não diretamente ligadas às nossas ações, essas mortes ocorreram no contexto da resistência aos grileiros de terra. Isso gerou muitas situações delicadas e nos trouxe dores de cabeça, inclusive ao tentar colaborar com a Justiça para solucionar os casos. No entanto, não vimos muito resultado na proteção dos pescadores, o que levou, inclusive, ao exílio de uma liderança da região devido às ameaças.

Não dá para esquecer isso. Antes desse processo de organização coletiva dos pescadores, não havia uma resistência estruturada. A partir dessa organização, conseguimos garantir o direito a um projeto de criação de peixes em tanque-rede no Lago Madalena, no Jaci. Foi uma conquista importante diante de tantas dificuldades.

Por outro lado, uma grande derrota foi a destruição desse projeto devido à formação do Lago de Santo Antônio, no final de 2011. Isso nos levou a entrar com uma ação judicial contra a Santo Antônio Energia, em defesa dos direitos da organização coletiva dos pescadores de Jaci. Infelizmente, no início de 2024, saiu o veredicto do Supremo Tribunal Federal, e perdemos essa ação.

Apesar disso, o processo de organização nos possibilitou traçar uma nova caminhada a partir de 2016, na fronteira com a Bolívia. Isso resultou na criação do Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira, que tem promovido mobilização popular e já alcançou conquistas significativas. Entre elas, conseguimos alterar a Lei Orgânica do município para incluir os direitos da natureza e apresentar um projeto de lei reconhecendo o Rio Laje como sujeito de direitos, tornando-se o primeiro rio brasileiro a obter esse status legal.

Esse processo organizativo também gerou três protocolos de consulta aprovados e em uso pelo Ministério Público, com apoio do Fundo Casa, no início da pandemia. Além disso, apresentamos um projeto de lei na Câmara de Vereadores de Guajará-Mirim para proibir a pulverização aérea de agrotóxicos no município. O objetivo é proteger as águas, as populações indígenas, os agricultores familiares e o meio ambiente, pois esse modelo do agronegócio tem contaminado fortemente a região.

Outra conquista importante foi a colaboração, por meio do Fundo Casa e do Instituto Madeira Vivo, no fortalecimento da resistência do povo Karipuna para a proteção de seu território. 

Além disso, investimos no fortalecimento das juventudes, um ponto essencial que começamos com o apoio do Fundo Casa. Criamos um grupo de jovens educomunicadores indígenas, ativistas, agricultores familiares, ribeirinhos e urbanos. Isso tem sido fundamental para garantir que a juventude também faça a diferença na educomunicação a serviço do bem-viver de suas comunidades.

5- Diante dos desafios futuros, quais são as principais estratégias do Instituto Madeira Vivo para os próximos anos? Há iniciativas em andamento que merecem destaque? E como vocês veem o engajamento das novas gerações nessa luta? 

Iremar: O Instituto Madeira Vivo completou, em 2024, 18 anos de idade. Enfim, já estamos na maioridade. Um dos grandes desafios que percebemos é dar conta de tanta demanda, pois muitas das organizações de base não têm condições de manter ou criar sua personalidade jurídica. Com isso, fomos aprendendo a dar esse suporte jurídico e administrativo para essas comunidades. No entanto, a demanda tem sido crescente e nem sempre temos recursos para manter uma equipe administrativa, o que me sobrecarrega diretamente na coordenação desse processo, além de outras responsabilidades que preciso assumir para levantar recursos para a subsistência do dia a dia.

Nosso desafio é criar um corpo administrativo para atender com mais qualidade a demanda das bases, fortalecendo nosso papel como um guarda-chuva de apoio para essas iniciativas territoriais. Tivemos um histórico em que o PlanaFloro, que é o Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia, criado nos anos 1990, instigou a criação de várias organizações para receber recursos, mas muitas delas ficaram pelo caminho, enfrentando problemas jurídicos.  

Por isso, não vale a pena incentivar esse tipo de prática. Há mais de cinco anos, assumimos o papel de intermediar não apenas projetos da nossa região, mas também iniciativas de outros lugares, como o enfrentamento à energia nuclear no Rio de Janeiro, ações na Bahia e a luta por uma nova política ambiental para o Brasil. Nosso objetivo é potencializar essas iniciativas importantes, sem a necessidade de cada uma ter sua própria personalidade jurídica.

Um grande desafio do Instituto Madeira Vivo é fortalecer sua equipe interna para atender com mais qualidade essa demanda por novos projetos. Não fazemos captação de recursos para nós mesmos, mas em torno de objetivos, projetos e iniciativas. Esse é um diferencial: não pagamos consultorias. Temos um projeto de finalidade única e atuamos em função das demandas dos territórios e coletivos. Posso dizer que não somos uma ONG profissional, mas um movimento social que possui personalidade jurídica para potencializar sua atuação.

Dentro dessa perspectiva de futuro, temos investido na formação da juventude, tanto no campo da educação, para que possam anunciar as coisas boas de suas comunidades e denunciar desafios, quanto na preparação para a parte administrativa. A ideia é coordenar momentos de formação para jovens lideranças, sempre com a presença das lideranças mais antigas, garantindo que esse novo ciclo venha com a mentalidade de movimento social e não de disputa por recursos entre ONGs. Acreditamos que podemos ser fortes se as organizações de base forem fortalecidas, sem comprometer sua personalidade jurídica, mas executando recursos de forma mais estruturada.

Outra frente que temos fortalecido é a agrofloresta, ou melhor, a agroecologia, um modo de vida que promove a recuperação de áreas degradadas, seja em terras indígenas ou em territórios de extrativistas. Isso inclui a recuperação de florestas, especialmente com castanha, associada ao uso de energia solar fotovoltaica para garantir um direito básico: o acesso à água.

Buscamos tornar nosso modo de agir e viver cada vez mais alinhado aos princípios da agroecologia, aproximando-nos do modo de vida dos povos originários, que priorizam a harmonia com a natureza. Esse conceito, que alguns chamam de “bem-viver”, está no centro do que queremos transmitir às novas gerações: um projeto de vida coletivo, não apenas individual, baseado no ganho financeiro ou na profissionalização isolada.

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Iremar Antônio Ferreira, conselheiro do Fundo Casa Socioambiental, dedica sua vida à luta pelos direitos socioambientais na Amazônia. Fundador e diretor do Instituto Madeira Vivo (IMV), ele atua desde os anos 1990 ao lado de indígenas, ribeirinhos e extrativistas na defesa dos territórios e na resistência aos impactos das hidrelétricas no Rio Madeira. Membro ativo de redes como o FOSPA, o FMCJS e o COMVIDA, Iremar articula soluções comunitárias e baseadas no etnodesenvolvimento, sendo uma das principais vozes da Pan-Amazônia na luta por justiça socioambiental. 

Fotos: Iremar Antônio Ferreira

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