O tamanho da desigualdade e como a filantropia pode fazer mais
Por Maria Amália Souza (Fundadora e Diretora de Desenvolvimento Estratégico) e Cristina Orpheo (Diretora Executiva)
A tão falada desigualdade social no Brasil nunca foi tão escancarada como no período da pandemia de covid-19. Enquanto uma faixa da população seguiu os trabalhos em home office, viu os lucros aumentarem pelo e-commerce e presenciou os filhos estudando por meio de plataformas virtuais e com acompanhamento on-line, outra parte viu as já escassas fontes de renda se esvaírem. Para muitas pessoas sem condições de pagar os valores de aluguéis, restou a rua. Para centenas de crianças, a escola virou algo distante. Para uma boa parte dos brasileiros, a fome passou a assombrar novamente.
E, para a nossa tristeza, o abismo da desigualdade social ganhou muitos metros a mais.
A pandemia parece começar a ganhar ares de controle. Por outro lado, os estragos e as dores que ela provocou poderão levar anos para serem consertados e curadas, respectivamente. Teria sido diferente se vivêssemos em uma sociedade mais igualitária, onde todos tivessem os mesmos acessos e as mesmas oportunidades para ter enfrentado a crise gerada pela covid-19.
Diante de tudo isso, perguntamo-nos diariamente: o que precisamos fazer para que essa transformação ocorra e o fantasma da desigualdade não siga aumentando a cada dia? O que, de fato, é necessário para virarmos esse jogo? A filantropia é uma solução ou ela é parte do problema?
Um caminho – A filantropia para a justiça social pode ajudar a construir esse caminho, trilhado a partir do reconhecimento de quem são os verdadeiros protagonistas nos processos de transformação, reconhecendo que o poder das decisões deve ser das próprias comunidades, aquelas que, de fato, estão na linha de frente das injustiças raciais, de gênero, de saúde, de meio ambiente, de clima, de habitação e de outras formas de violação de seus direitos e seus territórios.
Um desafio – A filantropia não é uma solução pronta. Ela exige um olhar treinado, um pertencer a esse universo e um processo desenhado em parceria com as pessoas que vivem os desafios. É uma arte fazer com que os recursos cheguem de forma cuidadosa, sem sobressaltos nas relações locais, na medida, para elevar e consolidar as ações, e não melindrá-las ainda mais.
Contudo, essa forma de fazer nem parece estar no rol de opções da maioria da filantropia de alto escalão, inclusive vindo de ainda mais longe, de todo o campo da cooperação internacional. Dentro essa visão, tanto as fontes particulares, quanto as empresariais e governamentais, sempre trataram os grupos mais vulneráveis como “clientes” das suas ações. A distância entre essas duas realidades é tão imensa que essa visão convencional, estruturada, e porque não dizer antiquada, sempre tem tratado as comunidades mais excluídas e vulneráveis de nossa sociedade como se não tivessem nenhuma capacidade de solucionar os próprios problemas. As soluções, nessa visão distante, têm de vir, obrigatoriamente, da visão de “experts”. Pessoas sem educação formal ou que vêm de tradições culturais originárias não são vistas como protagonistas das suas próprias vidas por esse distante universo. Em geral, são percebidas somente como os beneficiários de algum tipo de caridade que possa vir em sua direção; como receptores passivos, e não como atores. Por isso, nessa visão, as soluções sempre precisam vir de fora – uma instituição que faz o papel de executor em prol dessas populações, para receber, geralmente, quantias generosas de recursos, e para executar soluções pensadas “para” e não “por” essa população considerada “incapaz”.
Claro que esse universo não é binário. Existem muitas tentativas dentro desse espectro de atores, que vem desse patamar de possibilidades financeiras, de fazer diferente, de se aproximar mais dos grupos com quem pretendem trabalhar, ouvir, entender. Mas mesmo aí há uma distorção não intencional, não esperada, e na maior parte das vezes não percebida até que seja tarde de mais para corrigir — é muito difícil que indivíduos de posse, com todas as melhores intenções, obtenham as informações mais claras e objetivas dos grupos com quem pretendem se aliar e apoiar — principalmente quando esses grupos tem um histórico de décadas ou séculos de exclusão. As expectativas de ambos os lados são muito grandes, e, vamos dizer, desniveladas. São universos muito distantes, onde a objetividade não tem quase espaço para existir. Às vezes a melhor das intenções não é suficiente para que os melhores resultados sejam possíveis. Portanto, nem sempre a falha vem daqueles posicionados no alto da pirâmide, mas da própria incompatibilidade de visões de mundo.
É exatamente aí onde precisamos olhar com mais atenção para alguns blocos dessa estrutura, aos quais nos acostumamos tanto e que viraram status quo aparentemente inquestionáveis. Partiremos de alguns pontos:
O poder – Precisamos retirar os filtros que mascaram as estruturas de poder a partir de onde estamos (as nossas organizações) para quebrar todos os paradigmas de reprodução desse sistema que causa essa mesma desigualdade que rechaçamos, mas que acaba penetrando em todas as instâncias das nossas organizações. O antídoto será sempre identificar as formas de “poder sobre” e desmantelá-las bloco por bloco, para recriar, em seu lugar, relações horizontais. Isso vai desde os processos decisórios, de hierarquias, até os cuidados e o exercício focado no respeito a quem colabora conosco. Cada dimensão de poder deve ser analisada e desmontada, para que se possa criar o “poder com”, que é diferente de desfuncionalidade. Há relações que podem ser de reconhecimento de valores individuais, enquanto ainda permitem uma distribuição de tarefas e de responsabilidades específicas e atribuíveis.
O tempo – A filantropia precisa, também, lidar com o tempo necessário para a transformação e investir a médio e a longo prazos. Não se muda realidades onde houve e há direitos violados, dores e sangue por décadas, em cronogramas de 12/24 meses. Quando se parte da premissa de que quem tem o dinheiro dita as regras, e se empresta regras da prática corporativa para atuar no social, limita-se muito o universo de atuação – e, com isso, o real impacto social que um investimento financeiro poderia produzir no mundo. Isso quando esse efeito não se torna negativo e piora, ainda mais, as circunstâncias. A chave para fazer bons investimentos nesse grande objetivo é saber que, para mudar o mundo, temos de ter persistência, dedicação e muita paciência.
Outscaling – Esse termo, mencionado por Ashish Kothari, do Global Tapestry of Alternatives, faz todo o sentido para nós, no campo da filantropia para a justiça social. Sabemos que as populações vulneráveis dentro de territórios de grande biodiversidade são fundamentais para a proteção do próprio bioma e que viabilizar uma economia sustentável nessas regiões é uma das grandes respostas para estimular a conservação e a regeneração locais. Contudo, tem nos preocupado as abordagens genericamente chamadas de Investimentos de Impacto Social. E isso quando utilizam o mesmo modelo de estimular o consumo de alguns produtos específicos em cadeias de produção, incentivam comunidades a aumentar essa produção – por ser o que tem mais procura do mercado – em detrimento da grande variedade de espécies que tradicionalmente cultivam e com as quais contam, na medida certa, para produzir uma renda digna. Essa atuação, agregada ao conceito de “upscaling” da produção, que flutua com a demanda (ou não) do mercado, em vez de produzir soluções, pode aumentar, ainda mais, o abismo da desigualdade e ser arrebatador para uma comunidade. Por isso, trabalhamos com a ideia de “outscaling”, que estimula a produção possível de cada produto por uma infinidade de comunidades, fazendo com que cada espécie seja cultivada e manejada de acordo com as condições de cada território, e que, ao mesmo tempo, a combinação das produções coletivamente combinadas faça uma real diferença na economia local, enquanto demonstra a viabilidade econômica da floresta em pé.
Onde estimular a economia e onde proteger direitos – Seguindo nessa lógica, o mercado é seletivo em sua lógica. Está buscando produtos que têm mercado e foca em como estimular a produção. Isso está bem em locais onde as condições estão já postas, onde os territórios estão garantidos e a comunidade está bem organizada, preferencialmente em cooperativas (algo, inclusive, comum em vários biomas). Contudo, se a primeira lógica é produzir demandas por produtos da biodiversidade no sentido de garantir a proteção e a sustentabilidade, é necessário, primeiramente, ver como esse território está ameaçado e em que instâncias (e são muitas) a comunidade está lutando para garantir suas ocupações tradicionais, sua demarcação, quais ainda não estão garantidas por lei (e, por isso, sofrem todo tipo de invasões ilegais). Geralmente, nessas regiões, a violação de direitos é tão grande que quem tenta protegê-los sofre constantes ameaças e violências. O crescimento desses casos é tão agudo e notável que nos preocupa que esteja sendo deixado de lado nas amplas discussões sobre investimentos. Na maioria desses casos, a vulnerabilidade é tamanha que não há outra forma de abordagem que não a da filantropia para a justiça social, de forma cuidadosa, inclusive para não expor essas populações.
A coletividade – Há um grande problema no campo de filantropia atual de inventar líderes individuais. Enquanto há, realmente, alguns indivíduos dentro dos grandes coletivos sociais – indígenas, quilombolas, comunidades de produtores familiares etc. – que se propõem a levar as vozes das próprias comunidades para instâncias maiores, e, portanto, se sobressaem aos demais, a insistência da sociedade ocidental em pinça-los para além do seu coletivo e visibiliza-los como líderes individuais é um dos maiores problemas que notamos nesse campo. Não só essa projeção aumenta o risco às próprias vidas num contexto político altamente antagônico e perigoso, mas também causa uma série de problemas internos às suas comunidades, o que interfere no trabalho como um todo que este coletivo precisa realizar.
Tomamos a decisão, como um fundo local, de não contribuir para esse contexto. Por isso, sempre orientamos os financiadores internacionais para esses riscos. Ainda assim, essa abordagem reflete a cultura dos heróis e das heroínas do Ocidente, tão enraizados nessas culturas que essa discussão ainda precisará de tempo para amadurecer. Só esperamos que, enquanto isso se dá, não seja ao custo de mais vidas.
Entenda-se que essa não é somente uma questão de opinião. Visibilizar indivíduos, carregá-los para falar com governadores, reis, presidentes e corporações internacionais realmente é uma estratégia importante para influenciar governos e políticas, bem como para trazer a público essas importantes lutas. Contudo, depois que isso acontece, essas pessoas, sem muitas condições, voltam aos territórios de origem para enfrentar condições ainda mais adversas ao trabalho e à própria vida, com mínimas condições de autoproteção. Como exemplo, há os casos emblemáticos de Chico Mendes, e Zé Claudio e Maria, para citar apenas dois. Por isso, o Fundo Casa tem buscado soluções que foquem sempre no coletivo, na liderança compartilhada como medida de proteção a essas populações tão ameaçadas.
O futuro – Temos um ator-chave para essa transformação: o jovem. O jovem negro, indígena, extrativista. Esse ator com o poder de luta, que ainda sonha e tem energia recicladora. Com acesso a mais ferramentas para essa transformação, para construir um futuro melhor, embasado e amparado na sabedoria ancestral dos mais velhos. Está dado o caminho. E essa é uma abordagem que exige persistência, dedicação e paciência, pois estamos construindo um alicerce forte e resistente. Apostar na formação e oferecer investimentos necessários são as premissas básicas para que essa transformação profunda e duradoura ocorra.
A esperança na colaboração – Para chegarmos lá, instituições de todo tipo, das filantrópicas às de investimento de impacto, precisamos construir elos entre nossas organizações, usando as nossas diferenças e singularidades institucionais para construirmos uma corrente tão forte que não se romperá. Infelizmente, nossa sociedade está fortemente guiada pela competição. Mesmo entre a sociedade civil, provar o próprio valor para os outros, a fim de conseguir mais visibilidade e recursos, é prática comum. A filantropia em si é, em geral, desenhada para produzir competição, pois usa a visão da escassez para estimular uma corrida pelo recurso. Quem for melhor nos argumentos, mais hábil na narrativa, leva o prêmio do apoio. Isso promove o crescimento desmedido de alguns grupos, deixando a maioria dos “menos hábeis” totalmente de fora. Quando falamos das camadas da sociedade mais excluídas, elas não estão nem no radar desse universo. Contudo, onde estamos agora nesse mundo? Vemos avanços realmente? Ou a sensação é de constante retrocesso?
O Fundo Casa tem escolhido outro caminho: o da colaboração. Compartilhamos saberes, modelos e relações, bem como convidamos outras instituições a unirem-se às nossas relações de confiança, assim como contamos com as redes de confiança nos territórios e ampliamos essas relações constantemente. Mantemos um foco na horizontalidade da nossa relação interna – equipe/conselho/rede de apoio – e entre nós e os grupos que apoiamos. Para nós, o que tem valor real é o protagonismo das comunidades mais vulneráveis, para que encontrem soluções. Somos os aliados delas. O recurso que temos para doar é uma ferramenta útil, mas não o que dita a relação. E, assim, modelamos constantemente, com palavras e ações, o mundo que estamos buscando construir. Se conseguirmos, juntos – nós que estamos na posição de viabilizar os recursos para os setores mais abandonados de nossas sociedades –, melhorar nossos diálogos, estarmos dispostos a ouvir, a analisar nossos próprios métodos de atuação, e estivermos dispostos a colocar o melhor de cada um de nós para que esse propósito comum seja realizado, estaremos, de fato, quebrando as correntes da competição, que afasta, fragiliza e cria abismos. E aí responderemos, com toda a certeza, que sim, a filantropia pode fazer muito mais.