03.03.2021

Pesquisa da Fiocruz apoiada pelo Fundo Casa traz alívio e contribui com articulação entre comunidades atingidas pelo vazamento de petróleo no Nordeste

Fruto de muita articulação e luta, marisqueiras de Fortim e Aracati, no Ceará, conquistam a realização da pesquisa sobre os impactos do derramamento do petróleo cru na segurança alimentar. O estudo foi uma parceria entre Fiocruz Ceará, Instituto Terramar, NPDM/UFC PUC-RJ com apoio do Fundo Casa Socioambiental.

Em meados de 2019, manchas de petróleo cru começaram a ser notadas em praias do Nordeste brasileiro, logo ficou evidente que se tratava de algo grave e de grandes proporções. O vazamento de petróleo alcançou mais de 2 mil quilômetros de costa, atingindo também a região Sudeste, se consolidando como o maior desastre ambiental já registrado no litoral brasileiro. Apesar das grandes dimensões do evento e das investigações em curso, até hoje não se sabe ao certo qual a origem deste desastre, um crime ambiental sem precedentes. Entre as populações mais afetadas estão aquelas que vivem diretamente da pesca artesanal e, principalmente,  da coleta de mariscos, gente que teve sua segurança alimentar colocada em cheque. Estas populações também tiveram sua renda profundamente afetada. Havia o receio da população em arriscar o consumo de pescados que poderiam estar contaminados com petróleo. Para piorar a situação, a pandemia da COVID-19 veio na sequência, aumentando ainda mais a situação de vulnerabilidade de inúmeras comunidades tradicionais pesqueiras, que é o caso das mulheres marisqueiras que fazem parte das 24 comunidades que tiram o seu sustento na extração de moluscos na foz do Rio Jaguaribe, em Fortim e Aracati, no Ceará, duas das regiões mais afetadas pelo vazamento do petróleo.

Embora o impacto na venda do marisco tenha sido imediato, uma questão vivida com aflição, desde a época do aparecimento das primeiras manchas, foi a ausência de pesquisas que pudessem atestar os reais danos em relação à contaminação do marisco. O Estado, que tem o dever de garantir a defesa e a preservação do meio ambiente, não acionou o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo (PNC) de forma efetiva, deixando as comunidades tradicionais expostas aos riscos e ameaças à sua saúde. Além de arcarem sozinhas com os prejuízos gerados pelo incidente sobre sua economia, o governo federal não se mobilizou para produzir uma resposta precisa sobre a contaminação, o que trouxe impactos importantes sobre a saúde mental das populações pesqueiras do rio.

Mas neste início do ano, a Fiocruz Ceará traz boas notícias para as comunidades pesqueiras de Fortim, situadas na foz do Jaguaribe. Resultados preliminares da pesquisa sob coordenação da Dra. Margareth Borges Coutinho Gallo evidenciaram que os níveis de hidrocarbonetos poli cíclicos aromáticos (HPAs) e de metais pesados como cromo, vanádio, zinco, níquel, cobalto, chumbo, cádmio e mercúrio estão dentro dos limites recomendados pela legislação (ANVISA portaria 685/1998; Decreto 55.871/1965; EU 835/2011). Um alívio para quem vive da pesca! A confirmação científica foi comemorada e veiculada em toda a mídia local. Agora, pescadores e marisqueiras podem consumir e comercializar os seus pescados com a certeza de que se trata de um produto saudável. Apesar de haver ainda muitas perguntas sem respostas, essa notícia, mesmo um ano e meio após o desastre ambiental, traz certo alento frente a tanto sofrimento vivenciado pelos pescadores, principalmente pelas mulheres marisqueiras, que foram as mais impactadas por esse crime ambiental.

Mariscos coletados para a pesquisa são fonte de renda e alimentação para as 24 comunidades pesqueiras da foz do Jaguaribe. Foto: Ana L. Nobre – Instituto Terramar.

 

A luta de pesquisadores para garantir o direito à produção de dados para as comunidades tradicionais pesqueiras impactadas pelo derramento do petróleo

Margareth, que é pesquisadora na área de saúde e meio ambiente, ficou sabendo da chamada de projetos do Fundo Casa por meio de um grupo de WhatsApp. Não era a primeira vez que ela tentava angariar recursos para poder realizar a pesquisa sobre a contaminação dos mariscos pelo petróleo, tão reivindicada pelas marisqueiras de todo o Ceará. A pesquisadora já havia tentado outros apoios por meio de agências finaciadoras como o CNPq e CAPES, porém não deu certo, pois os recursos não foram suficientes para todos os inscritos. Uma possível parceria entre várias instituições com o Governo do Estado do Ceará também foi cogitada, seriam cerca de 2 milhões de reais para um estudo amplo, contemplando as regiões mais afetadas do litoral cearense, analisando não só a qualidade dos mariscos mas também dos peixes, sedimento e água, porém, mais uma vez o recurso não chegou. Mas ela não desistiu e em diálogo com o Instituto Terramar  enviaram projeto para o Fundo Casa Sociambiental – Edital Apoio Emergencial Nordeste – Programa Rios e Oceanos. “Graças a somente R$ 20 mil reais” e à colaboração de mais de 20 voluntários, o coletivo conseguiu unir forças para realizar a pesquisa e assim levar esperança para as comunidades pesqueiras. 

Medir a quantidade de poluentes nos mariscos não é uma tarefa fácil, ela exige pesquisadores altamente qualificados e equipamentos que não são encontrados em qualquer laboratório. As amostras precisam ser coletadas, embaladas em papel alumínio e congeladas a -70ºC para que não percam suas características. Os mariscos do Jaguaribe foram enviados de avião para a PUC do Rio de Janeiro, onde existe um laboratório capaz de analisar as amostras. O custo para análise de cada amostra é grande, são cerca de R$ 360,00 (com desconto) para a análise de hidrocarbonetos e R$ 280,00 para análise de metais pesados. Também foram realizadas análises genotóxicas para detectar se houveram mudanças no DNA dos mariscos, feitas em parceria com uma start-up situada no NPDM-UFC, cada análise deste tipo custa cerca de R$ 500,00. Somando os custos das análises aos custos do gelo seco utilizado no transporte aéreo e o próprio frete aéreo, o custo total de cada análise pode facilmente ultrapassar os mil reais, por isso a grande importância do apoio dado pelo Fundo Casa. Por fim, a Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará (SEMACE) entrou como parceira da pesquisa, contribuindo com análises físico-químicas bimestrais da água.

  
Cada análise pode custar mais de mil reais, por isso o apoio dado pelo Fundo Casa foi fundamental para a pesquisa. Foto: Fátima de Cássia Evangelista de Oliveira – Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará (NPDM – UFC).

 

Apesar das análises iniciais apresentarem resultados dentro dos níveis da normalidade, elas só foram realizadas um ano após ao derramamento do petróleo e em um trecho específico do rio, a partir da luta e esforço dos movimentos de pescadoras artesanais e entidades parceiras. Por se tratar de uma pesquisa participativa e em processo, que busca também qualificar como os impactos socioambientais do derramamento têm sido sentidos, ela vem revelando, a partir da escuta das pescadoras artesanais, um conjunto de violações de direitos graves para quem vive junto ao rio, que vão além da ausência de material contaminante encontrado nos mariscos. Alguns deles são a fragilização da autonomia das mulheres pescadoras, necessidade de buscar outros ofícios, insegurança alimentar, impactos sobre seus modos de vida tradicionais e saúde mental, violação ao direito de ter acesso a um ambiente sadio, ameaça à garantia de seus territórios tradicionais, entre outros. Além disso, existe um acúmulo de impactos, oriundos de fontes diversas, que o rio tem sofrido. A carcinicultura extensiva, uso de agrotóxicos, poluição por esgoto sem tratamento e salinização da água são alguns dos impactos relatados que antecedem e se sobrepõem ao derramamento de petróleo e intensificam também a reivindicação por direito à garantia a um território saudável e livre de poluentes, que deve ser garantido para as populações tradicionais. Portanto, ainda existem muitas perguntas em aberto que exigem engajamento do poder público para elucidá-las.

Nos próximos meses, os mariscos serão coletados em outros pontos do Rio Jaguaribe, como na comunidade quilombola do Cumbe e Canavieiras, ambas em Aracati. Os pés no território, a escuta e ausculta do saber local, as rodas de conversas presenciais e virtuais entre pescadoras, marisqueiras e quilombolas são algumas das metodologias que estão sendo utilizadas para aprofundar as reflexões sobre os impactos gerados pelo derramento do petróleo. O trabalho das mulheres na mariscagem e suas trajetórias históricas fortalecem o espaço de articulação no enfrentamento ao derramamento do petróleo, mas este  não pode ser dado como superado. Além das diversas violações de direitos identificadas (e que se acumulam), a trajetória das marisqueiras no Rio Jaguaribe, quase sempre tem sido ocultadas pela história.

As pescadoras artesanais são mulheres que vivem suas vidas “junto ao rio”, sendo as águas do Jaguaribe fundamentais na construção de suas memórias e na forma como se veem no mundo. Essas mulheres se autodenominam como quilombolas e/ou como marisqueiras e pescadoras artesanais, tendo todas suas vivências, cotidiano e seu modo de vida ancorados pelos conhecimentos ancestrais e tradicionais que remontam à ocupação histórica da região. A pesca artesanal, portanto, vai além de um ofício praticado, mas se caracteriza como modo de vida e cultura, tendo os corpos d’água e a totalidade dos territórios tradicionais importância fundante na manutenção e reprodução de sua vida social, religiosa e cultural. Por isso, “se o território adoece nós também adoecemos”, e elas têm feito esforços gigantes para provocar o Estado sobre o tema e a reivindicar por seus direitos de reparação. Pelo menos gora, com os primeiros resultados das pesquisas, as marisqueiras de Fortim e suas famílias podem ficar mais tranquilas, sabendo que seu alimento está saudável e que a sua fonte de renda poderá melhorar em breve.

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Texto por:

Ana Luísa Nobre, formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e mestra em antropologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), feminista, assessora de campo do Instituto Terramar 

Andréa Machado Camurça, formada em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará (UFC), feminista, assessora de campo do Instituto Terramar

Margareth B. C. Gallo, formada em Farmácia pela Faculdade Estadual de Farmácia e Bioquímica do Espírito Santo (FAFABES), doutora em química de produtos naturais pela Universidade Federal de São Carlos, São Paulo (UFSCar), pesquisadora na área de Saúde e Ambiente da Fiocruz Ceará

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