
Um ano depois das enchentes, os frutos do apoios às comunidades já aparecem no Rio Grande do Sul
Fundo Casa Socioambiental aponta impactos concretos da chamada Reconstruir RS em áreas como segurança alimentar, saúde mental, reflorestamento e reconstrução de vidas
Passado um ano das enchentes no Rio Grande do Sul, os sinais de recuperação começam a brotar nas margens dos rios, nos quintais produtivos, nos encontros coletivos, nos plantios de mudas e nos espaços de acolhimento emocional. A chamada emergencial “Reconstruir RS – Apoio à Resiliência Climática e Reconstrução Comunitária”, realizada pelo Fundo Casa Socioambiental em 2024, mostrou que, com recursos na medida certa e protagonismo local, é possível realizar transformações significativas.
A chamada se destacou como uma importante iniciativa de apoio emergencial direto a projetos comunitários. Foi também o ponto de partida para o novo Programa de Apoio a Eventos Climáticos Extremos do Fundo Casa, que reconhece a urgência crescente de ações ágeis e efetivas frente às mudanças climáticas.
Nos últimos meses, nossa equipe visitou pessoalmente 11 dos 69 projetos apoiados. O que se viu foi um esforço coletivo de retomada da vida, com foco em soluções reais e enraizadas nos territórios. As ações vão desde a produção de alimentos e recuperação de matas ciliares até atendimentos em saúde mental e geração de renda.
“A chamada tem uma importância muito grande para os grupos da sociedade civil, especialmente os tradicionais e ancestrais. Ela vem fortalecer os trabalhos que esses grupos já realizavam, mas que foram sobrecarregados e afetados com a destruição provocada pelas águas”, explica Vanessa Purper, gestora de programas do Fundo Casa.
As iniciativas apoiadas são protagonizadas por coletivos indígenas, quilombolas, periféricos, de juventudes, pescadores artesanais, movimentos de mulheres e grupos que, apesar de atingidos pelas águas, continuam em pé, firmes na reconstrução dos seus modos de vida e dos seus territórios. E tudo isso com muita agilidade.
“Mesmo com muitos desafios, os grupos conseguem executar muitas atividades que fazem diferença real nos territórios. Em pouco tempo e enfrentando muitos desafios, conseguiram se organizar, escrever projetos e colocá-los em prática”, afirma Vanessa Purper.
Um exemplo é o projeto “Retomada Kaingang Gãh Ré”, em Porto Alegre. A iniciativa, desenvolvida no Morro Santana, ocorre em território indígena e envolve ações de reflorestamento com espécies nativas e recuperação de nascentes, contribuindo para a restauração do modo de vida tradicional do povo Kaingang.

Cacica Gah Té em na floresta urbana doterritório da Retomada Kaingang. Foto: Vanessa Purper
A retirada de espécies exóticas, como o pinus, e o plantio de mudas frutíferas nativas são estratégias de resiliência climática, e também de fortalecimento cultural. Parte da madeira dos pinheiros derrubados está sendo usada para reconstruir as casas e melhorar a estrutura da escola indígena.
Fortalecendo laços: o mapa que virou ferramenta de reconstrução e colaboração
Logo após o lançamento da chamada, a equipe do Fundo Casa criou um mapa colaborativo com a localização e os temas de atuação de cada projeto apoiado. A intenção era aproximar os grupos e estimular o compartilhamento de saberes. E funcionou. As iniciativas apoiadas começaram a se visitar, trocar experiências e estratégias.
“Percebemos que os grupos já tinham práticas colaborativas antes mesmo do apoio. O mapa ajudou a potencializar essas conexões. Por exemplo, há grupos que cultivam mudas para reflorestamento e outros que trabalham com a recuperação de áreas degradadas. Esses encontros estão acontecendo e gerando sinergias”, relata Vanessa Purper.

O mapa foi desenvolvido como uma ferramenta de integração entre os grupos, conectando projetos em diferentes localidades
O impacto foi tão positivo que inspirou um dos parceiros da chamada, a Brazilfoundation, a aprofundar sua atuação na região. A organização visitou alguns projetos em abril de 2025 com perspectiva de apoios diretos.
Para Bruno Faria, Gerente de Parcerias Estratégicas da BrazilFoundation, “os projetos apoiados mostraram forte poder de mobilização para enfrentar as dificuldades de realizar ações após o escoamento da água. O encontro da equipe da nossa equipe com essas iniciativas apoiadas foi importante para pensar as próximas ações e como seguir gerando impacto nos territórios afetados, que ainda têm muitas adversidades para superar até reestabelecer o cotidiano pré enchentes.”
Durante as visitas aos territórios, o Fundo Casa tem exercitado uma escuta atenta e sensível, tentando imaginar como eram aqueles lugares em maio de 2024, no auge da enchente. São observadas o que ainda carrega as marcas das águas: as perdas, a ansiedade, a incerteza sobre o futuro, assim como o que já mudou. Esse processo tem ensinado muito e aprofundado ainda mais o compromisso com as comunidades apoiadas.
“Estar presente nos locais e conhecer as pessoas e as atividades dos projetos nos dá uma visão muito mais ampla, mesmo um ano depois da tragédia. A gente aprende, troca e melhora nossa capacidade de ser parceiro nesses processos de resiliência”, destaca Vanessa.
Prevenção, reflorestamento e produção de alimentos
Entre os projetos apoiados estão ações voltadas à mitigação de riscos futuros. O Instituto InGá, por exemplo, trabalha na proteção socioambiental das margens do Lago Guaíba e do bairro Lami, em Porto Alegre. A iniciativa promove capacitações em resgate e resposta a emergências, estuda condições ambientais e atua na recuperação das condições de vida de comunidades ribeirinhas e pescadores.

Equipe InGá e SerAção
Outro exemplo é o da Associação Terra Viva, no Assentamento Apolônio de Carvalho. Ali, foram construídos três berçários de mudas para recuperar áreas degradadas pelas enchentes. A implantação de sistemas agroflorestais visa restaurar o solo e garantir a produção de alimentos saudáveis em um território historicamente voltado à agricultura orgânica.

Berçário e plantação da Associação, dedicado à hortaliças e leguminosas. Foto: Vanessa Purper
A retomada da produção agroecológica foi também o foco do projeto do Grupo das Hortas Ecológicas José Lutzenberger, que perdeu praticamente tudo com as enchentes: ferramentas, mudas, produção e estruturas. Superado o impacto inicial, o grupo enfrentou outro desafio: a desconfiança dos consumidores em relação à segurança dos alimentos.

Locais onde as famílias plantam; todos ficaram mais de 15 dias debaixo d’água. Foto: Vanessa Purper
Os agricultores realizaram testes de qualidade do solo e passaram a expor os laudos nas feiras, comprovando que o terreno está apto para o cultivo orgânico. A estratégia ajudou a reconquistar a confiança da comunidade e a viabilizar novamente a venda dos alimentos livres de agrotóxicos.
Reconstruir é mais do que reparar
O que os projetos da chamada Reconstruir RS têm demonstrado ao longo deste primeiro ano é que reconstruir não é simplesmente voltar ao que era antes. É transformar. É reconhecer a força de quem permaneceu, apoiar quem resistiu e apostar em soluções que nascem do chão, das mãos e do afeto.
Uma inovação importante foi permitir que os grupos incluíssem ações voltadas à saúde mental. O cuidado com o emocional das lideranças e comunidades, muitas ainda em situação de luto e desamparo, tornou-se parte essencial desse processo.
Com esse trabalho, o Fundo Casa reafirma seu compromisso com a justiça socioambiental ao promover apoios emergenciais que unem clima, território e protagonismo comunitário. Reconhece que a reconstrução é um processo contínuo, que exige tempo, escuta e apoio constante.
Cuidar da terra é também cuidar das pessoas e reconstruir é seguir caminhando juntos.