08.03.2024

Dia das Mulheres: coletivos femininos fortalecem a luta ambiental e climática no Brasil

Presentes em todos os biomas, entidades lideradas e compostas por mulheres buscam por justiça climática, inclusão e preservação ambiental

Por Letícia Klein, para Um Só Planeta – Publicado originalmente em Um Só Planeta 


Eliza da Silveira pesca com a família desde os seis anos de idade. Hoje, aos 41, em meio a uma atividade “dominada pelos homens, em que muitos são machistas”, ela coordena um rancho de pesca em Imbituba, Santa Catarina. O trabalho envolve pescar, cozinhar, organizar, dividir os pescados, fazer manutenção nas redes e embarcações, anotar o que foi pego e vai ser vendido, e prestar contas para a tripulação. “Às vezes faço papel de enfermeira, psicóloga, tudo um pouco. Como mulher pescadora eu luto por uma pesca artesanal sustentável. Não é fácil, mas não deixarei de lutar. Sou mãe e quero deixar um futuro melhor pra minha filha”, relata.

À frente da coordenação do rancho desde 2016, a luta de Eliza se intensificou quando ela se juntou ao movimento MUC Brasil – Mulheres Unidas pelo Clima, liderado por Gisele Elis Martins e Cristiane Bossoni. “Hoje o clima está cada vez mais diferente. A água do mar está cada vez mais quente, o inverno tem verão, e isso afeta muito a pesca artesanal. Eu participo do projeto para que no futuro as gerações não sejam atingidas com tanta mudança no clima”, diz Eliza.

Criado em 2021 com o objetivo de realizar ações de comunicação e educação ambiental no território, o MUC se transformou num coletivo de mulheres em busca de justiça climática. “Lutar pela preservação ambiental e pelos direitos da mulher é uma batalha antiga. Como mulheres, mães e ambientalistas, vínhamos há muito tempo nos envolvendo em projetos de defesa do meio ambiente. Eu, através do jornalismo, e a Cris, através do ecoturismo e do Conselho Comunitário de Ibiraquera, defendendo as lutas do território. Foi quando resolvemos unir essa luta ambiental e também climática com a busca diária que vivemos para ter direitos iguais como mulheres”, conta Gisele.

Nos seus canais de comunicação, o MUC divulga conteúdos, vídeos e reportagens sobre a crise climática sob a perspectiva de gênero. Nesses três anos de atuação, o movimento desenvolveu os projetos “Guardiões da APA da Baleia Franca: pelo combate às mudanças climáticas” (2022/2023) e “Mulheres da Lagoa de Ibiraquera” (2021/2022), que foi renovado para uma segunda fase neste ano, com foco no fortalecimento comunitário e justiça climática.

Projeto Baleia Franca desenvolvido pela rede MUC. — Foto: Divulgação

Em sua primeira edição, o projeto Mulheres da Lagoa de Ibiraquera teve como objetivo ouvir, unir e fortalecer as mulheres do território por meio de ações como rodas de conversa, oficinas de capacitação, mutirões, ações de mobilização e de resgate cultural, que integraram as mulheres da comunidade e abriram debates para ações futuras. “Tudo foi feito por mulheres. Buscamos formar uma rede de mulheres engajadas e conscientes de seu papel na luta por justiça climática, de gênero e ambiental. Queremos proporcionar acesso a conhecimento que oportunize essas mulheres a ter voz em suas comunidades, que sejam agentes de transformação e valorização da proteção de seu território”, explica Gisele.

A continuidade do projeto desde o ano passado inclui a realização de ações práticas de orientação, educação ambiental e levantamento de dados necessários para uma maior proteção socioambiental do território. As ações propostas consistem em práticas de mapeamento para o georreferenciamento de corpos d’água, banhados e mata ciliar, sinalização de áreas de preservação permanente (APPs) para proteção de restingas, atividades de educação ambiental sobre resíduos sólidos e encontros de engajamento, mobilização e fortalecimento de mulheres que vivem na região da Lagoa de Ibiraquera.

Com quase 9 mil km², a Lagoa de Ibiraquera é um sistema lagunar formado por quatro lagoas na região sul de Santa Catarina. Os principais problemas existentes no entorno da lagoa hoje são a falta de saneamento básico, a ocupação em Área de Preservação Permanente (APP), a instalação de criadouro de camarão e pecuária nas proximidades da orla, a pesca predatória e o fechamento de caminhos tradicionais e acessos públicos da lagoa. O mapeamento que tem sido feito vai resultar na construção de um mapa georreferenciado para uso da comunidade em ações de planejamento e proteção do território.

“O sistema lagunar é bem lindo e frágil. Tem uma riqueza absurda de pesca artesanal, também de ecoturismo, e vemos que tudo está mudando muito por causa do turismo desenfreado de massa, a mudança do clima e o desmatamento na beira da lagoa para construções”, diz Maria Aparecida Ferreira, agente ambiental da APA da Baleia Franca, líder comunitária em Imbituba e coordenadora de Santa Catarina dentro da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos (Confrem).

Maria Aparecida, de família de pescadores e pequenos agricultores, se diz ativista ambiental desde criança, e foi seu ativismo que chamou a atenção das fundadoras do MUC, que a convidaram para atuar como âncora na comunidade. “A gente vem desenvolvendo esse trabalho com o MUC, de fortalecimento da proteção ambiental aqui na nossa lagoa, na nossa comunidade, e a gente tem conseguido várias ações”, avalia, listando a participação na revisão do plano diretor, a criação de um plano de gestão da lagoa, com responsabilidades e deveres, e a organização de um grande fórum de discussão para abordar o mapeamento. “A gente faz um barulho tão grande e um movimento tão grande que as pessoas cada vez mais estão se engajando nessa batalha”, comemora.

Trabalho da MUC Brasil – Mulheres Unidas pelo Clima, durante a pandemia da COVID-19. — Foto: Divulgação


Teia de relações

A continuidade do projeto das Mulheres da Lagoa de Ibiraquera foi possível graças à aprovação na chamada “Mulheres Liderando a Ação Climática 2023”, do Fundo Casa Socioambiental, um mecanismo de financiamento que trabalha a partir das premissas da autonomia e respeito aos conhecimentos, à tradição, às escolhas e às propostas de soluções de determinados grupos sociais. “Nós trabalhamos para promover a conservação e a sustentabilidade ambiental, a democracia, o respeito aos direitos e a justiça através de uma tecnologia social que foca em grupos vulnerabilizados e distantes das possibilidades de acessar os recursos disponíveis da filantropia para a justiça socioambiental”, explica Vanessa Purper, gestora de programas do Fundo Casa.

Constatamos uma realidade presente nos seis biomas brasileiros: de norte a sul, de leste a oeste, vemos o protagonismo das mulheres que estão engajadas nas ações de proteção ambiental. As mulheres são protetoras de todas as formas de vida, guardiãs de saberes e, há muito, são protagonistas das causas que afetam diretamente suas vidas, comunidades e territórios – sejam essas afetações climáticas, políticas, sociais ou históricas.

Para Vanessa, apesar de toda a importância da participação das mulheres nesse âmbito, e do lastro de machismo e violências perpetrados no país, ainda hoje é ínfimo o reconhecimento e a valorização desse trabalho essencial para a harmonia e a existência no planeta.”

Diante disso, o Fundo Casa atua com o tema de gênero de forma transversal nos seus programas. Além do apoio financeiro direto para a execução dos projetos, a entidade oferece oportunidades de fortalecimento de capacidades de gestão (técnica, administrativa, contábil, financeira) para que os grupos e comunidades tradicionais liderados por mulheres mantenham suas agendas e ocupem mais espaços na sociedade.

Desde 2016, o Fundo Casa faz parte da Aliança GAGGA (Global Alliance for Green and Gender Action), que atua em mais de 40 países do Sul Global em parceria com fundos socioambientais, fundos de mulheres e organizações de base comunitária. Em conjunto, segundo Vanessa, os dois têm a missão de fortalecer e unificar as capacidades de grupos e movimentos comunitários de direitos das mulheres e justiça socioambiental, para que estes possam alcançar suas agendas políticas prioritárias e manter seu trabalho alinhado com seus pontos fortes.

“Acreditamos que as organizações de base comunitária lideradas por mulheres estão em melhor posição para propor soluções climáticas justas em relação a gênero e alternativas para os problemas que enfrentam, porque conhecem o local, o idioma, a cultura e os desafios de seus territórios”, afirma a gestora.

Nos seus quase 20 anos de atividade, o Fundo Casa já apoiou 3.157 projetos (os dados de 2023 ainda estão sendo levantados e devem aumentar essa quantidade). Em 2022, 47% dos apoios foram dedicados a organizações com mulheres à frente da gestão, e 53% dos projetos foram liderados por mulheres. Mais da metade dos apoios realizados naquele ano foram destinados à Amazônia, e cerca de um quarto, ao Nordeste, regiões prioritárias que enfrentam desafios socioambientais complexos, de acordo com o relatório da entidade. De cada 10 projetos apoiados em 2022, seis eram liderados por populações quilombolas, indígenas, pescadores e extrativistas.

“As pessoas defensoras do ambiente são alvo da perversidade de um sistema que desrespeita a ética e a convivência harmônica entre os seres, e suas vidas são eliminadas quando suas lutas vão de encontro aos interesses de minorias”, afirma a gestora sobre a importância de apoiar a luta ambiental e o trabalho de mulheres que se dedicam a preservar a vida.

Guardiães

A Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), já apoiada pelo Fundo, é outro exemplo desse propósito. Criada em 2021 por 20 mulheres dos seis biomas brasileiros (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal), o grupo marcou presença na COP28, em Dubai, no último dezembro. “A presença das mulheres indígenas tem sido muito forte dentro desses espaços, e a gente pauta diversas frentes de atuação, como o empoderamento na formação política e a questão de reflorestar mentes, de levar essa concepção do valor da terra e da sociedade que queremos transformar”, conta Puyr Tembé, co-fundadora da Anmiga e membro da Federação dos Povos Indígenas do Pará.

Além da luta pelo território, pela pauta ambiental e a atuação in loco pela valorização e fortalecimento do trabalho das guardiãs e guardiões do território, o coletivo também tem o projeto da bancada do cocar, que visa a aldear a política: ter nos municípios e estados com territórios indígenas, além do nível federal, candidaturas indígenas para ocupar o poder público.

“Cada vez mais as mulheres estão entendendo que é importante estar nos espaços de decisões, seja dentro das organizações de base, das escolas, da área da saúde. Qualquer espaço como esse pra gente é muito relevante. A gente tem visto esses resultados e visto que a sociedade está se alinhando cada vez mais com a nossa pauta nossa, vindo somar forças para que a gente possa chegar nos lugares onde nunca chegou”, afirma Puyr.

Neste mês, com o tema “Março das Originárias: parem as violências contra o nosso corpo território”, a Anmiga promove uma agenda de debates para marcar a luta das mulheres indígenas por igualdade de gênero, começando com uma live neste dia 08, Dia da Mulher. A cada semana, as mulheres dos seis biomas vão se reunir para discutir e debater as pautas de violências e violações contra o território, eleições, direitos e deveres das indígenas, entre outros temas.

“Se faz necessário que participemos da luta pela pauta ambiental porque somos mães, somos avós, somos mulheres guerreiras da ancestralidade que têm esse laço com a terra. A terra para nós tem o sentido de ser de mãe, porque nos alimenta, cuida de nós, nos protege” explica Puyr. “A relação de cuidar da pauta ambiental é uma relação de cuidar do próximo, de proteger, e quando a gente cuida, não é somente para nós povos, mas para a sociedade em geral.”

Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) na COP 28, em Dubai. — Foto: Vanessa Oliveira/Um Só Planeta

 

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